Atraso na hora certa

Havia dormido o suficiente. Acordara disposto e na hora planejada. Tomou banho sem pressa, mas também sem misturar-se tanto com a gostosa água que refrescava seu corpo a ponto de perder a hora. Imaginara seu café da manhã já servido em cima da mesa a fim de não perder tempo escolhendo o que comer. Vestiu-se como sempre: roupas que lhe favoreciam os ombros largos e as pernas compridas. Sabia que sua altura, somada à cor dos olhos e aos cabelos lisos, cor de mel, eram uma combinação inegável de atração. Seu sorriso parecia dar as boas-vindas ao mundo a cada vez que se abria em seu rosto. Quem ganhava seu sorriso, tinha a alma rejuvenescida. Sua postura era relaxada e tão convidativa quanto o sorriso. Comeu, escovou os dentes e deu uma última conferida se levava tudo que precisava. Passou os dedos entre os cabelos, afastando-o um pouco dos olhos (mais um de seus charmes a ele desconhecidos), apalpou o bolso de trás de calça, jogou a jaqueta por cima dos ombros de modo casual e abriu a porta.

Seu dia estava com tudo planejado e seu espírito até estava animado com as perspectivas que vinham pela frente. Desceu pelas escadas pulando cada 2 degraus e resolveu, já no térreo, conferir as horas. Susto. Prendeu a respiração por alguns segundos, franziu a testa e esfregou os olhos com os dedos polegar e indicador da mesma mão (a outra segurava o portador da má notícia: o relógio), como se precisasse de foco. Ação. Entendeu que se atrasara verdadeiramente e, num disparo, começou a correr. Sua expressão preocupada não lhe tirava o charme. Afastava as pessoas com os braços, desculpando-se quando esbarrava nelas e, ao desviar-se de alguns carros na rua, sorria em resposta às buzinadas que levava.  Avistou a alguns metros seu meio de transporte deslizar-se em rumo à direção que ele queria ir. Deu mais velocidade às pernas, mas não conseguiu alcançá-lo a tempo. Recuperando o fôlego com as mãos apoiadas nos joelhos e a cabeça baixa, tentava pensar em outra solução, mas não obteve muito êxito já que o que pensava mesmo eram só palavrões contra si, contra o maldito relógio, contra o despertador e, agora também, contra o sol que lhe causava calor. Raiva. Como podia ter perdido o bendito?? Como chegaria lá agora?

Escutou o som de outro chegando e apressou-se em entrar para não perder mais tempo. Perguntou ao condutor algumas indicações, pagou a tarifa e sentou-se. Afastou o cabelo da testa molhada, secou-a com o dorso da mão e reclinou-se pra frente, apoiando os cotovelos nas pernas. Balançando a cabeça em inconformidade consigo mesmo, abriu os olhos e olhou sem rumo. A visão foi ficando mais nítida e percebeu uma garotinha sozinha, sentada com os joelhos grudados um no outro, mãos em cima das coxas, meias subindo pelas canelas (cada uma numa altura diferente) e um rabo de cavalo murcho com fios soltos. Ela estava olhando para a paisagem do lado de fora com um olhar ausente. Parecia dormir de olhos abertos.

Levantou-se, convidou-se para sentar ao seu lado e, após um consentimento mudo, perguntou se ela estava perdida. Ela sorriu, agradeceu e avisou que sabia exatamente onde estava. Voltou a olhar em direção ao horizonte. Com seu típico senso de humor, ele riu e disse o nome da cidade em tom de reprovação a si mesmo, como se atestando a estupidez da sua pergunta. Isso chamou atenção da menina, que voltou os olhos a ele. Lhe olhou fixamente, mas seus olhos eram dóceis. O estudou por uns segundos e disse que quem parecia estar perdido era ele. Ele afirmou que sim com a cabeça, olhou pela janela e soltou um suspiro. Ela o olhou novamente. Perguntou quando se perdera. Intrigado pela pergunta, tentou recordar-se de datas. Outro susto. Este inusitado dia que ele estava vivendo nada mais era que seu próprio aniversário. Perdeu levemente a respiração e levou a mão esquerda à boca semiaberta, surpreso. Sentiu-se estranhamente feliz, como se fosse o detentor  de um segredo que lhe fôra confidenciado.

Querendo uma reposta tão pura e honesta que só uma criança poderia providenciar, ele a questionou qual seria o seu pedido de aniversário, caso hoje fosse o dia dela. Sem pestanejar, ela sentou-se mais ereta, seu rosto iluminou-se e respondeu que queria que todo dia fosse seu aniversário. “Nos nossos aniversários, nos permitimos realmente viver o que e como queremos. Acho que deveríamos fazer isso todo dia…”, então deixou seus ombros caírem e os olhos voltarem a dormir. Ele afagou sua cabeça com um sorriso de canto de boca, despediu-se e desceu no próximo ponto.

Não sabia exatamente onde estava, mas sabia que iria permitir-se viver aquele dia como queria. Decidiu arrancar páginas do livro da sua vida e reescrever novas com a estória que estava por vir por conta dos quatro minutos ganhos, não perdidos no seu atraso. Percebeu que foi este atraso que, ironicamente, trouxe a vida de volta na hora certa. Desejou-se mentalmente um feliz aniversário por vários dias e resolveu, ali, segurar seu destino com as próprias mãos para que ele permanecesse nos trilhos.

3 Comments Add yours

  1. Od says:

    Muito vem, bb!!!!! Glad to see you back on your b-day. The tone shows that you didn’t lose the touch and must be happy, and that makes me happy too.
    Great job, as always. Amused me…
    Bjs e congrats!!!

  2. Angela says:

    Mais um texto delicioso… adorei você ter voltado, estava sentindo falta! A lição passada é simples porém importantíssima. Parabéns de novo, viva muitos e muitos dias de aniversário e seja sempre muito feliz. Beijo!

  3. Ana says:

    Sapequinha essa menina hein??!! rs

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