O ráscal em questão tinha por volta dos seus 7 anos neste corpinho chifrudinho que ocupara desta vez. Era, portanto, uma criança e, como toda, era travesso. Era ainda mais por viver no inferno. Não em um inferno, mas no inferno mesmo: a casa do todo-poderoso Belzebu. Pelo que eu me lembre, eles tinham grau de parentesco muito próximo. Acho que o malditinho era afilhado do nosso Chefe. Desculpem-me, mas como isso foi há muito tempo e agora já sou uma senhora idosa, os detalhes me escapam mesmo. Inclusive, se isso tudo lhe parecer muito fantasioso, há duas explicações possíveis: ou você é uma alma muito boazinha que nunca passou perto do inferno (e, por conseqüência óbvia, você deve ser bem chato também) ou eu estou dando pitadas de exagero e maldade para tornar tudo mais interessante. Afinal de contas, estou velha, não morta. Carrego comigo ainda a alma maliciosa. Ah, que delícia!
Enfim, o que aconteceu foi o seguinte: eu era designada a nunca descer pro nosso aconchego, pois como era muito boa (ou devo dizer “má”?) no meu trabalho, eu deveria sempre estar rodando aqui no andar de cima para infernizar pessoas como você, caro leitor. Assim, escutava todos os tipos de fuxicos, intrigas e novidades de quem descia e subia o tempo todo. Safa que sou, não acredita em 98%. Os outros 2% eu me permitia descer e checar por mim mesma. Se fossem reais, seriam muito bons para deixar passar. E lá fui eu tirar a limpo a estória/história do menino que conseguiu morrer queimado. Por este motivo, ele conseguiu deixar marcado o máximo da ironia já inventada nesta ou qualquer outra vida! Só por isso já invejo o infeliz nesta e em qualquer outra vida também.
Como as más notícias correm rápido, cheguei a tempo de ainda acompanhar o total caos dentro do maior caos já conhecido. Era alma gritando pra tudo quanto é lado. Os com perfis mais sofredores, se viam como os culpados e se autopuniam (haja paciência para estes tipos…). Uns só riam e rolavam no chão sem fazer a menor questão de aparentar qualquer preocupação (os mais divertidos) e outros só queriam mesmo saber o que estava acontecendo. Diabinhos com perfil repórter. Aqui que eu me encaixo. Fui perguntando o máximo que pude até obter a versão que lhes relato agora.
Trata-se do filho errado de Ho-Masubi, Deus do Fogo. Jo-Wasabi (até seu nome era ardido) era muito conhecido entre as crianças do inferno e crianças e adultos da Terra. Vinha de lá pra cá e de cá pra lá com muita facilidade, sempre atiçando calorosas discussões, virando um amigo contra o outro neste ardor todo, causando pequenos incêndios em encontros, festas ou qualquer lugar que envolvesse pessoas (adorava as multidões!). Se reabastecia facilmente no inferno buscando mais fogo, calor, ardor. Numa de suas peripécias, quis mostrar que já era quase adolescente e sabia mais coisas do que as lhe eram contadas. Resolveu partir em uma missão sozinho. Com os olhos fechados, girou o globo, apontou com o dedo para o local escolhido (sim, escolhido… os olhos estavam só semicerrados e o sorriso, ao contrário, bem abertinho) e foi-se.
Chegando ao local, começou logo seu ritual de fogo: ficou na ponta do pé esquerdo, colocou os bracinhos em torno da cintura e rodopiou-se em si mesmo o mais rápido que podia. As fagulhas começaram a ser produzidas em seu rosto que ia ficando cada vez mais vermelho e o olhos mais vibrantes e focados. Quando ele já tinha estoque de fogo o suficiente para lançar em direção ao alvo, travou. Avistou uma menina de cabelos vermelhos encarando-o de braços cruzados, com os dois pés bem firmes, como se fossem grudados no chão. Não sorriu, mas falou que “havia se passado muito tempo, Jo-Wa, e que não esperava que ele se recordasse dela”. Ela foi interrompida ao ter de responder ao chamado da mãe para jantar: “Agnis, minha filha, onde se escondeu agora? Pequena, venha comer, está tudo quentinho!” Exalou o ar à menção da temperatura que sua mãe imaginar conhecer, mas não sabia da missa, a metade. Ao responder, nem se mexeu ou piscou dizendo que entraria já, já, pois estava somente colhendo folhas secas e coloridas para seu trabalhinho de Ciências. Jo-Wa já havia escutado aquela voz, com o tom frio, estruturado e perfeito que só uma mentira tão rápida e bem contada possuía.
Ele continuava com o fogo dentro de si, ainda se equilibrando na ponta do pé esquerdo e a boca estufada como se prendendo o ar. Os olhos estavam até meio esbugalhados, como se tivessem ar e fogo para sair dali também. Ela teve que conter o riso. Resolveu aproximar-se dele e falou que soltasse um pouco do fogo para não começar a sentir muitas cócegas. Ele obedeceu e foi soltando o foguinho em direção ao nada, dando pequenas risadinhas de alívio e das cócegas atrasadas. Ela riu junto e disse que ele continuava meio atrapalhado, tal com ela se recordara. Aproximou-se e deu um tapa na orelha dele, bem gesto de amigos íntimos. Os dois continuaram suas risadinhas infantis até que ele resolveu perguntar como ela sabia seu nome. Ela o interrompeu e abaixou o olhar, fitando os próprios pés. Jo-Wa entendeu ao ver, no topo da cabeça da tal Agnis, o símbolo do triângulo pontiagudo misturado com os cabelos cor-de-fogo.
Entendeu que se conheciam de longa data, mas o porquê de não se lembrar dela, ele não entendia. Ela levantou os olhos, cheios de lágrimas e sussurrou para ele ir embora e mandar tapinhas nos outros por ela. As palavras eram quase inaudíveis e ele percebeu que não conhecia este tipo de lágrima. Só conhecia as de raiva ou as de desespero, causadas por morte. Causadas por ele. Aquelas eram diferentes. Sentiu vontade de aproximar-se da menina, mas ela deu um passo pra trás. Bastou um. Ele entendeu. Ela permaneceu com os braços cruzados, mas agora tinha um pé na frente do outro. Esta nova posição a tirou um pouco da firmeza que apresentava antes. Agora ela parecia mais como uma menina mesmo. Quando esta percepção dela tornou-se viva dentro dele, Jo-Wasabi sentiu seu lado esquerdo, perto do tórax, queimar. Pôs a mão direita em cima e puxou ar. Ela esboçou um movimento, mas o máximo que fez foi ter os olhos abertos, focados nele. A lágrima secou rapidamente de seu olho, como se tivesse evaporado. “Saia. Não me obrigue a fazer nada mais. Simplesmente saia.” Deu as costas para ele com os cabelos acenando uma despedida atrás de si.
Ele continuou ardendo, aos poucos, mas de forma crescente e intensa. Ela foi andando em direção à casa e ele tinha a imagem dela sorrindo, mas com olhos gélidos. Quanto mais a imagem se fixava em sua cabeça, mais o corpo ardia. E mais longe Agnis estava. Ele sentia-se brasa pura. Quando a porta da casa bateu atrás dela, Jo-Wasabi caiu no chão. No mesmo instante, talvez apenas um segundo de diferença. Sabia que estava morrendo, mas não entendia como. Rindo, abraçou a própria morte e sentiu o que causara a muitos. Riu ainda mais. Morreu feliz. Morreu do seu próprio veneno, da sua própria curiosidade incandescente, da sua própria paixão.
Quem era a menina???
Por que ela tinha tanta influência em Jo-Wa???
Este texto me deixou com muitas perguntas……….
Beijos!!!