Aquele dia

Lembro-me deste dia como se fosse hoje e não consigo evitar um sorriso gostoso ao relembrar as sensações, as correrias e as peraltices do dia em que comprei minha primeira bicicleta. No dia, meu pai e minha mãe tiveram um compromisso importante e me deixaram sob a guarda do meu tio Artur. Tio Artinho, como o chamávamos, era um personagem saído de quadrinhos. Tenho toda a certeza do universo que ele não nasceu da mesma forma que as outras pessoas de tão excêntrico, divertido e fanfarrão que ele era. Ah, Artinho, você fazia mesmo artes! Quando meus pais saíram após engolirem um pão com geleia cada e meu pai tomar café puro e minha mãe um suco de fruta amarela, eu já estava sentada a mesa com meus livros e cadernos bem abertos e prontos para serem dissecados por mim. Meus óculos estavam frouxos e pendiam bem no meio do nariz, contrários ao rabo de cavalo que estava bem preso e até fazendo minha cabeça doer um pouco. Bastou escutarmos o ronco do carro já cansado que tio Artinho se lançou ao meu lado com um salto animado e disse “vamos, menina!”, fechando meus cadernos. Alternei olhares para ele e para as garrafas do carrinho de bebidas. Ele entendeu minha dúvida e me garantiu:

– “Não, não andei bebendo! Também não enlouqueci, mas tomar conta de você não significa ter que ficar em casa. Vamos dar umas voltas e nos divertir!”.

Peralta, não hesitei. Meu sorriso denunciou minha total aceitação e a rapidez com que me vi no portão deveria ter servido de aviso para o dia que se iniciava, mas ignoramos isso.

Não quis fazer uma pergunta sequer dos planos, pois adorava (ainda adoro!) surpresas e cada passo que eu apostava dentro de mim que seria para a direita e era para a esquerda, fogos de alegria soltavam dentro de mim. Meu tio percebia toda a agitação e apertava minha mão cada vez mais forte. A primeira parada foi no bar para saber que horas cada um iria ao jóquei. Adorei esta palavra de imediato. Parecia um segredo compartilhado e até escancarado, mas que todos tratavam ainda como segredo. Depois ganhei, mesmo sem querer, um algodão doce que serviu mais para decorar o passeio. Eu ainda o tinha em mãos quando chegamos ao local desejado. Que grande alegria ver tanto adulto junto! Eu queria sair correndo e ver os cavalos, mas meu tio disse que as prioridades precisavam ser tratadas e se ajoelhou à minha frente. Explicou-me o que eram apostas e que ele iria fazer uma. Também quis. Ele perguntou se eu tinha dinheiro. Claro que sim, sempre sobrava um poco da merenda da escola. Apostei tudo no que mais gostei do nome. Ele riu e constatou baixinho: “ah, mulheres…”. Acatou sem tentar dissuadir-me da aposta, afinal eu queria aprender. Sorte de principiante deveria ser uma regra aplicada de Física. Não falha! Saí de lá com várias notas no bolso e gargalhando! Retribuí a gentileza prévia do meu tio e lhe comprei um algodão doce, o qual ele gostou mais que eu e devorou rapidamente. Ambos nos encontrávamos em estado de glória plena. Saltitante, entrei numa loja de doces e bolachas e comprei um estoque razoável para momentos em que me fossem negados pela minha mãe. Por detrás de risadas abafadas, concordamos que este seria o grande segredo do dia.

Quando ele voltou ao bar para exibir-me como um troféu aos amigos, eu fiquei sentada nos degraus da frente para olhar o movimento da rua como se fosse a dona dela. Me sentia grande, completa. Foi quando avistei um rapaz empurrando uma bicicleta vermelha com tanta força e desajeito que fazia a bicicleta parecer uma mula empacada. Corri até ele e perguntei onde eu poderia obter aquela belezinha. Aí, claro, expliquei o dia rico detalhando o valor recebido e que poderia comprar uma para mim, bastava ele me indicar onde. O vi olhar em volta de forma apressada e nervosa quando soltou as palavras mágicas de que a bicicleta custava exatamente o mesmo valor que eu tinha!

– “Puxa, que dia maravilhoso!! Minha segunda grande sorte do dia! É perfeito!”

E assim foi minha primeira e única grande compra de algo roubado. Ainda estava sem entender que estava envolvida quando surgiram pessoas correndo e gritando “pega ladrãããão!”. Aí entrei em êxtase! O dia perfeito ainda teria direito à corrida atrás de ladrão! Como já expliquei, era peralta e não hesitei: subi na bicicleta e pedalei fortemente com apenas uma mão no guidão e a outra alvoroçando ainda mais os berrinhos da multidão. Estava achando tudo um grande barato e sorria! Havia ganho dinheiro, comprado uma bicicleta e agora perseguia ladrão! Era demais. Até que me pegaram e questionaram-me sobre a bicicleta. A esta altura, já estava longe do bar e não tinha meu tio para apoiar-me na versão verdadeira de tudo que tinha acontecido. Acharam que era uma menina de família revoltada e que tinha problemas emocionais que me levaram a roubar. Quando meu tio me alcançou, já tinham levado meu pertence e estava sem dinheiro. Relatei tudo no mínimo detalhe, aos prantos e inconformada, com receio de que levaria uma bronca. Não. Tio Artinho era mais esperto. Soltou uma boa gargalhada, sentou-me na calçada com seus braços entrelaçados em minha cintura, fazendo minha cabeça encaixar em seu peito e profetizou perfeitamente:

– “Um dia você vai fazer que nem eu: rir de tudo isso!”

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  1. Carla says:

    ;-), vc sempre surpreendendo. bjs

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