Martin Luther King pode ter sido grandioso para os mortais, mas para mim, assinou o atestado de irritante idiotice quando disse algo parecido com: “Se você não está pronto para morrer por alguma coisa, então você não está pronto para viver.” Eu já morri e permaneço semi-morta há séculos. Que estupidez falar isso e não levar a mim e a meus colegas em consideração. Devo inverter suas palavras e dizer que “se não tenho motivos para viver por algo, não estou pronto para permanecer morta”?!, afinal de contas, morta já estou e sim, tenho vários motivos pelos quais gostaria de viver de novo – a pergunta é: como faço isso, bom e velho Luther? Foi pensando nisso que resolvi contar o seguinte…
Este tipo de pergunta não saia da minha cabeça, considerando que fui condenada a “viver” na eternidade. Na eternidade das trevas. Nem amigos mais eu tinha, pois todos, naturalmente, morriam (será que nenhum deles tinha um propósito para viver, aí morreram?!). Andar com os do meu tipo me cansa: eles ficam muito presos às épocas nas quais nasceram. No começo é legal, curioso, mas depois ficamos entediados com tanto sentimento preso ao passado. Apego cansa, emburrece. Fora que, visualmente, é meio patético uma lady do século XVII como eu, vestida belamente com rendas, babados e vestidos unicamente femininos ser vista com uma dos anos 80, com glitter no cabelo, meias coloridas, peças que não combinam nada entre si e vestuário que inclui luvinhas excêntricas… Sinto0me sempre presa numa eterna festa à fantasia de mau gosto. Se imaginarem esta cena, concordarão comigo.
Meu sentidos aguçados e poderes sobrenaturais só me servem mesmo para sobrevivência: tenho instinto e olfato altamente eficazes contra qualquer possível perigo e também para minhas caças. A visão me permite ver bem, muito além do que se pode imaginar. A audição cansa, pois escutar o pensamento de todos não é tarefa fácil. Aprendi a filtrar, claro, mas ainda assim requer esforço. Também por sobrevivência, sou forçada a mudar de esconderijo diurno (incluindo cidades e países diferentes) com freqüência bem alta para que curiosos e insônes não me encontrem e matem-me com raios insandecidos de sol invadindo meu corpo e queimando-me até virar cinzas.
De tanto passear por países afora, adquiri o hábito de escolher certas pessoas em cada lugar e observá-las. Sempre que visitava o local, lá ia eu, Julienne de Rochet, fuçar a vida do ou da tal. Não sei se isso faz de mim uma quase voyeur, mas aceito o termo com prazer. Hum, que conveniente, uma voyeur que aceita algo com prazer…
Foi observando estes seres escolhidos a dedo que descobri uma das minhas diversões. De certa forma, eu participava de suas vidas e adorava quando conseguia forjar um encontro acidental entre nós. Eles, tão ausentes a quem eu era, ao tanto de coisas que sabia a seus respeitos e eu, impávida, com poderes para matá-los com um simples pensamento, se assim quisesse. Mas não. Quando me encontrava com eles na fila de cinema e, deliberadamente, derrubava refrigerante neles, adorava observar suas reações e olhares. Olhares dizem muito sobre uma pessoa. Gostava também de testar simpatia: os parava na rua, à noite, e pedia informação sobre como chegar a tal lugar. Agora, o que eu mais gostava mesmo era do jogo da sedução. Fingir (e sempre convencer, claro) meu interesse por um deles (quer fosse homem ou mulher) e atrai-los para uma conversa inocente em bares, casas noturnas, casas proibidas, cafés ou até mesmo numa calçada, passeando. Todos, sem exceção, ficavam fascinados com minhas respostas perfeitas para suas perguntas. Pensavam haver encontrado a mulher dos seus sonhos, afinal tudo encaixava. Pobres tolos! Sequer desconfiavam da minha habilidade para ler mentes. Ah, e quando usava da telecinese para trazer objetos úteis à sedução para perto no momento exato? Tinha que conter-me para não explodir em gargalhadas! Com os mais espertos, usava certos transes para que não se dessem conta de nada e acreditassem que era simples obra divina do destino que tudo estivesse no lugar certo, na hora certa.
Como sempre tinha que sumir da vida deles após esses encontros tão passionais e cheios de mistério, resolvi ocupar-me com a função de achar-lhes alguém quase tão interessante quanto eu. Missão árdua, confesso. Admito também que fazia isso somente para os que julgava merecer. Os/as babacas de plantão eram submetidos a outro tipo de recompensa…
A arte de embutir ideias nas mentes de ambas as partes para que se achassem perfeitos um para o outro, marcar o mesmo tipo de encontros acidentais e fazer com que o maquinado tivesse um certo tom de destino tornou-se uma missão para mim. Entendam que não fiz isso por simples boa ação. Precisava de algo para seguir em frente, para divertir-me ou ajudar-me. Destinei o resto da minha vida fazendo isso, achando casais que nunca se encontrariam, e creio que aí consegui compreender o Sr. Martin. Parei de rebelar-me contra seu pensamento. Eu havia encontrado um motivo para viver de novo. Mesmo estando morta.