Como grandes fãs de rock e outros gêneros musicais de boa qualidade, eu e meu marido tivemos grande participação e influência no gosto musical dos meus 3 filhos e tenho certeza que eles influenciarão no gosto da caçula no futuro. Havia uma música, de uma das bandas que eu gostava, que simplesmente me tocava a cada vez que eu escutava e nunca soube muito bem explicar o porquê. Também nunca quis entender. Me tocava e pronto, não importando quantas vezes eu já a havia escutado na vida ou até no mesmo dia. Ela se chama “November Rain”. A chuva de novembro.
Foi numa habitual tarde de novembro que compreendi o que a música sempre me significou, mesmo que, naquela época eu não poderia fazer ideia de como minha vida se desenrolaria dali pra frente. Estava cuidando dos meus filhos de 4 e 6 anos quando aproveitei sua distração com a milésima vez que assistiam a um clássico da Disney e corri para o andar de cima para tomar banho. Estes eram os poucos minutos que tinha livres da correria dos meus afazeres domésticos. A filha mais velha estava na escola e só retornaria no começo da noite após estudar com uma amiga em sua casa e, a bebê, de meses ainda, havia acabado de adormecer na sua costumeira soneca da tarde.
Meu banheiro é bem grande, parece um dormitório de qualquer outra casa, e é emoldurado por espelhos em quase todas as paredes. Possui uma janela enorme e o chuveiro fica de frente para todos os espelhos que refletem praticamente todo o meu quarto. Achava aquilo tudo lindo quando compramos a casa e posso dizer que praticamente escolhi morar aqui devido ao excelente posicionamento de tudo no ”banheiro-dormitório”. Brincava com meu marido que tínhamos 2 suítes em 1 e, se caso um dia faltasse espaço para visitas, bastava abrir colchonetes ali mesmo que eles teriam quarto e banheiro privativos.
Como acontece com vários assuntos que se tornam habituais para as pessoas, minha casa começou a passar desapercebida para os meus olhos e eu já não a observava tanto. Neste dia de novembro, despi-me e entrei debaixo da água quente que parecia massagear meus pontos doloridos no corpo. Me dei conta do quão cansada estava e fiquei com os olhos fechados deixando a água abraçar-me e fazer cafuné em meus cabelos com seus dedos líquidos e penetrantes. Fui tirada do meu transe causado pelo relaxamento pelo meu filho de 6 anos que batia no vidro do box gritando de tanta alegria que “papai estava por todas as partes da casa!”. Demorei um pouco para entender, tentando voltar meus pensamentos para aquele momento e sair de onde eu havia estado. Ao vê-lo dar saltinhos e gargalhar apontando para a janela, esfreguei minhas mãos no vidro embaçado e vi que estava nevando. Meu coração pareceu entrar em perfeita harmonia com o tempo lá fora: congelado. Meus ouvidos pareciam entupidos e foi com grande lentidão que deixaram as palavras do meu filho serem processadas pelo meu cérebro ainda catatônico com a emoção. Ele queria ir lá fora e saudar o pai. Minhas lágrimas misturavam-se com a água do chuveiro, mas eu sabia exatamente qual era qual, pois suas temperaturas eram distintas em mim e em meu corpo.
Esforcei-me um pouco para que meu filho não visse rastro de tristeza em mim. Desligando o chuveiro, sorri candidamente para ele e afirmei que sim, claro que poderíamos e deveríamos ir lá fora ver o papai. Como um foguetinho, ele disparou para avisar à irmã de 4 anos e apanhar seus casacos e sapatos de neve. Eu me vesti rapidamente, coloquei uma toca de lã para proteger meus cabelos molhados e fui lá fora com eles. Todos de mãos dadas, sentados nos degraus de entrada, olhávamos para o céu aberto acima da gente que nos enviava pequenos flocos de emoção, saudade e ternura. Como recém-viúva , não contive o choro sem fim quando meu filho narrou, para minha surpresa de que sua memória e suas lembranças fossem tão ricas, como seu papai havia sempre dito que a neve e ele eram um só corpo, um só ser. Meu marido era esquiador profissional e ensinou meus 3 filhos mais velhos a esquiarem tão logo começaram a andar. Era absolutamente mágico ver este momento. Todos viravam um só, em perfeita harmonia com a paz da brancura da neve. Eles pareciam iluminar a pista de esquí mais que os raios de sol. Meu pequeno narrou as piadas feitas pelo pai como técnicas de ensino e ele e irmã gargalhavam enquanto eu enxugava as lágrimas. Estas escorriam bochechas abaixo na mesma velocidade que as palavras do meu pequeno tagarela subiam pelos ares.Ele lembrou dos tombos, dos chocolates quentes que serviam de combustível para tanto pique e dos elogios tecidos pelo pai para cada já ao caminho de volta para casa.
Meu marido morrera num acidente de esquí nas montanhas próximas daqui de casa. Como sempre havia sido muito cuidadoso, ninguém conseguiu explicar como seu esquí do pé esquerdo voou metros à sua frente o fazendo voar e capotar junto devido à tanta velocidade na qual descia a montanha no nível dos que desafiavam a natureza e seus próprios medos. Seu corpo misturou-se tanto com a neve que, por fim, ele havia realmente se unificado à ela: os dois tornaram-se um só a partir daquele momento. Naquele dia de novembro, refiz minhas pazes com a minha fé e reforcei ainda mais minha amizade com a vida. Voltei para dentro de casa com meus dois filhos cantarolando mentalmente a música que tanto fez sentido a partir de agora:
“And when your fears subside
And shadows still remain
I know that you can love me
When there’s no one left to blame
So nevermind the darkness
We still can find a way
‘Cause nothing lasts forever
Even cold november rain”
Que lindo, Ju! Adorei!!
Bjs,
Odi