Vida colorida

Nunca me considerei um artista de verdade. Pra mim, um real pintor era aquele que não precisava buscar inspiração. A inspiração era ele. O pertencia naturalmente. Vivia nele, ali dentro e estava sempre querendo sair, dar umas voltas pelo lado de fora. Estes eram os momentos quando ela, a inspiração, explodia e saia como um maremoto de dentro do artista. O queimava por dentro para depois acalmar por fora. Um artista não precisaria se explicar para ninguém, nem para ele mesmo. Aliás, suas artes seriam inexplicáveis, mas altamente compreendidas. Este paradoxo era o que, para mim, representava a irrevogável definição de ser um verdadeiro artista.

Com esta linha de raciocínio, abandonei vários quadros prontos, deixei vários esboços sem fim, prometi alguns como presentes, mas nunca os entregava (afinal “presente de mau gosto” é somente um ditado pra mim) e raramente deixava alguém ver os que eu, por um surto alcóolico ou erro mesmo, concluía e guardava abaixo de lenços brancos manchados de todos os tipos de cores de tintas. Desisti de fazer da pintura a minha carreira e passei a pintar como hobby apenas. Não, era mais que isso… pintava talvez até por necessidade, como uma terapia. Não adiantava me dizerem que sim, eu era talentoso. Nem que não haviam nunca conhecido outro artista que pudesse expressar os olhares dos meus modelos imaginários com tanta vida. Me diziam até que, caso se virassem de costas pro quadro e depois o olhassem de novo, teriam receio de que o modelo não estaria mais lá de tanto realismo. Comentavam que era simples criar sentimentos por eles, pois se identifcavam com seus momentos, suas dores, suas alegrias, seu sorrisos, suas malícias.

Após certa noite regada a vinhos, fumo, amigos e desconhecidos na minha casa, fui convencido a fazer um jogo com meus quadros. Colocamos todos emparelhados um ao lado do outro na sala, formando um U, e todos os convidados posicionaram-se no meio deste espaço. Isso permitia que todos tivessem vista completa a cada uma das “obras” (era assim que meus amigos chamavam meus quadros). O jogo consistia em “interpretarem” minhas obras com estórias criadas por eles mesmos. Não precisava ser contada por somente uma pessoa, outros poderiam ir dando pitacos no meio do caminho e aí iam criando um filminho para as cenas que presidiam aquelas imagens congeladas ali à nossa frente. Eu, claro, não fui permitido participar para não influenciar e, até certo ponto, estragar a diversão. Seria como assistir a um filme no cinema e o otário do lado te contar como seria o fim, em detalhes.

Um pouco incrédulo do que poderia surgir, mas igualmente curioso, enchi minha taça de vinho com mais do que permite a etiqueta, peguei meu cinzero favorito, acendi um cigarro e me ajeitei confortavelmente no meu puff de couro macio que parecia já moldado ao meu corpo. Cruzei as pernas e sorri meu tão famoso sorriso de lado. Era uma das minhas marcas registradas. Alternava o olhar entre meus joelhos e as expressões concentradas de cada um. Eu sabia que, quando um começasse a falar, o resto seguiria aos tropeços. Dito e feito. Eu fumava lentamente. A cada tragada, jogava a cabeça um pouco pra trás e espreitava os olhos para a fumaça não arder tanto a vista. Comecei a divertir-me com os absurdos criativos que cada um falava e outros eram capazes de superar o já inimaginável surrealismo. Estiquei bem o corpo pra trás, preguiçoso demais pra levantar, e com o braço parecendo um elástico, alcancei minha câmera e apertei “REC”. Sabia que seria divertido transformar aquilo tudo numa lembrança registrada. Quem sabe até isso não daria um filme ou uma peça com todos nós de protagonistas? Mais um sorriso tortinho surgiu.

Por estar gravando aquilo tudo, inconscientemente permiti-me relaxar e desconcentrar-me um pouco das falas e das invenções: poderia recorrer a elas quando bem entendesse depois. Paralelamente, comecei a fazer um outro filme, só que este era dentro da minha cabeça. Lembrei-me de como e quando comprei meu primeiro pincel profissional. Da minha canvas. Das minhas tintas, e dos meus macacões que sujei antes mesmo de ter pintado nada, mas queria simplesmente sentir-me um artista. Revivi emoções e incertezas. Rostos apareceram bem na minha frente como se eu tivesse voltado ao passado. Tudo misturava-se a borrões coloridos, traços finos e outros tortos. Senti-me pintando minha obra-prima ali dentro da minha mente. No meu silêncio absoluto dentro de uma sala extremamente barulhenta, repleta de vozes. Como que num susto, percebi um padrão entre as estórias ali inventadas e as minhas histórias: todas eram minhas cores. Cada escolha e falha minha. As cores me guiaram exatamente para onde elas desejaram, para o local onde eu deveria estar. Elas representavam pessoas, cenas, vontades, delírios, abusos, sucessos e apontavam pra um só lugar: a mim mesmo. E aí já não cabia mais a dúvida se eu era mesmo um grande artista. Soube, finalmente, que sim. Eu havia pintado a maior arte de todas: minha própria vida.

Ela era ora colorida, ora cinza e ora preto e branca. Mas todas as cores eram eu mesmo.

4 Comments Add yours

  1. Silvinho says:

    Queria saber se o filme que a filmadora registrou e o filme que vc fez na sua cabeça eram parecidos…

  2. Od says:

    🙂 é assim que a vida é… Você é o único dono do seu eu.
    Temos que dar valor para o que somos e o que fazemos e nos sentir bem com a nossa presença.
    Cabe a cada um saber que cor quer para si. A minha é bem colorida.
    Gosto da paz do verde, da vida do vermelho, da tranquilidade do azul e da harmonia das cores quando se encontram para fazer uma festa colorida. 🙂
    Caraca, viajei hahaha
    Bjs,
    Od

  3. I have to say from the bottom of my heart, you done well with this post, very useful stuff.

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