São Paulo, Brasil, 9pm
Chegou em casa novamente tarde da noite após outro longo e cansativo dia de trabalho. Desta vez quem doía era o outro extremo do seu corpo: os pés. Ontem era a cabeça (maldita enxaqueca) e hoje, o problema era mais embaixo. Jogou os finos e bonitos sapatos de salto alto sem nem olhar onde e deixou-se relaxar com o gelado do chão que parecia massagear a planta de cada pé. A fim de evitar que a cabeça reclamasse de novo, soltou o cabelo e sentiu o couro cabeludo dar uma longa espreguiçada.
Tóquio, Japão, 9am
Fisioterapeuta, a jovem mantinha uma agenda atribulada e cheia de clientes para poder manter a casa. Sendo mãe solteira, não havia outra opção. Corria pra cima e pra baixo atendendo seus clientes em casa e ainda fazia atendimento em clínicas especializadas duas vezes na semana. Havia sábados que trabalhava também, afinal de contas, doente não tem final de semana. Tudo em prol do pequeno que a fazia sorrir por dentro a cada vez que entrava em casa e via seu rostinho virando da TV para ela e vindo abraçá-la, agarrando-lhe as pernas. Aquilo era felicidade. E aquilo compensava todo e qualquer esforço. Aquilo a levava pra um outro lugar bem longe das horas caóticas do dia-a-dia. Aquilo tinha sentido. Aquilo era o sentido.
Caminhou lentamente até a cozinha com uma mão na cintura e a outra esfregando os olhos. Nem acendeu a luz para não ofuscar muito. Equilibrando-se nas pontas dos doloridos dedos para alcançar uma taça de vinho, despejou o conteúdo sem nenhum requinte e com igual falta de delicadeza, tomou vários goles como se fossem remédio amargo contra uma dor ainda mais amarga. Suspirou. Sentia-se exausta. Suspirou novamente, mas desta vez a respiração soou mais como um pedido de socorro ao ninguém que estava ali ao seu lado. O ânimo que a levara à cozinha a fez chegar em seu quarto e largar-se em cima da cama.
Estava contando para um de seus pacientes justamente sobre o tal sentido, a dedicação e sentir-se feliz quando foi interrompida pelo seu celular. Desculpou-se alegando que sempre deixava ligado por conta do menino. Vai que um dia houvesse uma emergência? E houve. Seu rosto congelou com a voz embargada do outro lado da linha, perguntando por ela. Soube imediatamente que tratava-se do pequeno. Após alguns segundos de pavor, registrou a notícia do atropelamento. Seus olhos tinham vida própria, pois lágrimas saíam inconscientemente. O celular caiu no chão e o quadro foi invertido: o paciente a socorreu – ironia. Passados outros segundos (que mais pareceram horas), ela agarrou a bolsa, catou o celular do chão e saiu porta afora.
Cama. Do que adiantara ter uma tão confortável se vinha sofrendo de crises e mais crises de insônias, noite após noite? Cobriu os olhos com o braço e tentou rezar. Não era muito crente, mas rezou com fé (ou seria desespero?) de que dormiria nesta noite. E dormiria bem! Descansaria! Tinha certeza disso (ou seria necessidade?). Mas não. Isso não ocorreu. Até sua fé parecia ter ido dormir em algum canto enquanto ela observava a noite comer seus minutos de sono com deleite malicioso.
Entrou pelo 3º andar do prédio hospitalar como uma zumbi possuída. Passou horas ao lado do pequeno, conversando em monólogo, contando-lhe estórias de quando ela tinha sua idade, rindo sozinha de como eram parecidos ou chorando também sozinha quando se dava conta da dura realidade do coma de seu único filho. Como ele parecia pacífico ali deitado com seus olhinhos fechados. Estaria sonhando? Com quê?
Saiu da cama, tomou banho e o despertador tocou somente quando ela já estava vestida e maquiava-se com o mesmo ânimo da noite anterior. De que teria adiantado ficar ali deitada esperando o bendito lhe dizer que era hora de acordar? Acordar… para tal coisa seria primeiro necessário ter dormido e este, definitivamente, não era seu caso. Fez um café mais forte que o habitual e tomou uma xícara também maior que a costumeira. Resolveu descer de escadas para ver se o movimento faria sentir-se menos pesada.
Ao abrir os olhos lentamente e tentar mover suas mãos para esfregar os olhos, o pequeno sentiu-se perdido. Olhou em volta e viu a mãe ao seu lado, incrédula, mas extasiada. Ao ver seus olhos tão preocupados e envelhecidos, entendeu que ela estivera acordada pelo exato mesmo período em que ele dormira o que parecia ser o sono eterno. Ela estava mais magra, mais abatida e, estranhamente, radiante. Segurou a mão dela com o mínimo de força que era o máximo que tinha e, através da garganta seca, arranhou palavras como pela boca como giz em quadro negro.
Ao som dos saltos ecoando pelos degraus, Seu Pedro, o porteiro que ali trabalhava por vários anos, virou o pescoço e mirou a moça que descia a escada com a bolsa semi-pendurada no ombro esquerdo. Ele abriu um sorriso e acenou. Ela não soube distinguir se era pra ela o aceno ou se ele mexia a mão no ritmo da música que saía do radinho de pilha ao lado. Educada, retribuiu o possível cumprimento com a voz rouca de cansaço, sem nem se atentar que as duas palavras que saíram de sua boca em resposta ao porteiro, revelavam seu mais íntimo e necessário desejo: “dorme bem”. São Paulo, Brasil, 9am
Escolheu bem as palavras, usando de uma intimidade pertencente somente a um filho e sua mãe. Sorrindo, lhe deu o aval: “dorme bem.” A mãe, com a brutalidade igual à de alguém que estilhaça uma taça na pista, caiu na cama ao seu lado e, com uma garganta tão molhada de emoção e lágrimas, retribuiu: “bom dia”. Tóquio, Japão, 9pm
Ju, você é genial. Saudades…
Beijos,
Od
É Odair….ela é mesmo!
Concordo com o Odair! Saudades! beijão
Só mais um comentário, nem preciso dizer que quase chorei né. rs