Ele era bi: sexual, polar, nário, gamo. Sim: bissexual, bipolar, binário e bígamo. E porque não adicionar… bípede. E foi por tudo isso que me apaixonei.
Foi uma coisa meio louca, sem pé nem cabeça (hum, pé tinha… falei acima que era bípede o tal). Nos conhecemos num trem a caminho das respectivas casas retornando dos respectivos trabalhos. Eu sou ortopedista e ele, rico. Isso não vem tanto ao caso agora, mas quero deixar registrado que ele trabalha apenas por prazer. Ele vinha do centro espírita onde vendia livros às quartas pela tarde. Isso lhe dava prazer toda quarta. Nos outros dias, envolvia-se com outras funções. Melhor pular esta parte… O fato é que joguei-me no assento do trem com a cabeça também jogada pra trás e fechei os olhos, tamanho era meu cansaço. Parecia ser o último dia do ano, mas estava apenas em fevereiro ainda. Quando começava a cochilar, alguém (o bípede!) tropeçou no meu pé direito, deixando os livros caírem no chão. Altamente desconcertado (bicha quando desconcerta é uma cena), pediu-me mil desculpas e não sabia se pegava os livros, punha a mão na boca para mostrar o quão sem graça estava ou se arrumava o cabelo para jogar charme (sim, sou um cara bem boa pinta e as pessoas tendem a tentar chamar minha atenção). Ri por dentro fuzilando-o com meus olhos cinzas, às quartas… Nos outros dias, ele muda de cor.
Ajeitei-me com certa preguiça, o que, claramente, elevava meu poder de sedução para o rico vendedor de livros. Todo de branco, foi fácil o perspicaz brincar com a tão costumeira piadinha de quebra-gelo: “Médico andando de trem?” e sorriu. Simpático, sorri de volta e falei: “Não, sou macumbeiro, mesa branca.” Uma resposta idiotizada pelo ego inflado. Como todo bom médico, acredito na ciência apenas, o que me deixa um total ignorante no que tange que religião tem ou não mesas.
Balancei a cabeça como que me desculpando pela respostinha cretina e falei: “tudo bem com seu pé?”. Ele o massageou um pouco e disse que doía. Sabia que não devia carregar tanto livro junto, era muito peso, mas não conseguia se controlar. Aproveitando do meu diploma, perguntei se poderia examinar rapidamente. Ele deixou, corrigindo a postura e desculpando-se pelo trabalho que me daria. Mexeu mais uma vez no cabelo e levantou o calcanhar. Ambos perderam as estações e resolvemos descer na última parada e tomar um café (ele) e eu um chai (bebidinha indiana muito em modinha hoje, mas que adoro). Comprei também meu chocolate favorito, o que gerou outra piadinha entre nós. Quem sabe, sabe do que estou falando. E desde este dia, Mr. Bi (como o chamo) faz parte da minha vida. Ora sim, ora não, mas nunca saiu definitivamente. A recíproca é verdadeira: ele também nunca entrou pra valer.
Exceto por não pensar duas vezes no que eu estava me metendo, entre a gente, tudo aconteceu duas vezes. O encantamento, a ruptura, a tentativa do desapego e a paixão de novo. Até o grau de intensidade era bi: bivolt. Tudo 2 vezes. Tudo bi. Bi…zarro. Mas para ser consistente com o que conto, até o conto será “bi”. Contarei se deu nossa estória será em outra parte. Outra estória e, quem sabe, com outro fim ao que tenho agora. A probabilidade é alta…