Atendi o telefone às pressas, de acordo com as batidas do meu coração. Eram 4h da manhã e, a esta hora, só se pode esperar tragédia do outro lado da linha. Meu quarto é bem escuro, de forma que, mesmo conhecendo todos os objetos de olhos fechados, derrubei tudo do criado-mudo na tentativa de, tateando, encontrar o aparelho que causava pânico aos meus ouvidos e às artérias com seu incessante e intervalado toque.
Apoiando o cotovelo esquerdo na cama e pressionando o telefone entre o pescoço e o ombro, atendi o telefone com voz rouca e olhos ardidos. Procurei os óculos para sentir-me mais atento (míope escuta melhor de óculos), mas não adiantou muito, pois jurei ter escutando o outro lado da linha questionar algo em inglês. Naturalmente respondi em português mesmo, querendo saber quem era. A voz indagou mais curta e seriamente que a primeira vez: “Adam?”. Aliviado por não ser uma tragédia e sim um engano, meu senso de humor sempre presente arriscou um: “Adam tá dormindo.” Respondi num inglês praticamente sem sotaque devido aos longos anos vividos na Austrália. Após segundos de pausa e uma respiração que poderia ser tanto irritação quanto reflexão, a voz sentenciou: “Alameda das Tulipas, 756. Chave: 290346” e desligou abruptamente. Permaneci na mesma posição escutando o tu-tu-tu-tu-tu da linha cortada. Curioso por nascença e matemático por formação, memorizei sem a menor dificuldade os dados passados e ainda permiti-me brincar com os números vendo a estranha coincidência da suposta “senha”: se adicionasse 1, 2 e 3 respectivamente a cada dupla numérica, obteria o dia de aniversário da minha mãe: 300549. Sacudi a cabeça, desliguei o telefone, acendi o abajur e anotei o endereço. Que diabos? Quem seria Adam?
Fui ao banheiro esvaziar a bexiga na mesma medida que minha cabeça se enchia de pensamentos e perguntas. Como percebi que não obteria resposta pra nenhuma, resolvi parar de pensar. Coloquei um jeans, uma camiseta branca e os sapatos mais fáceis e confortáveis de serem vestidos de pé. Agarrei a chave do carro e uma garrafa de água. Não morava muito perto da tal alameda, mas devido ao horário, cheguei rapidamente sem trânsito. Deparei-me com uma casa aparentemente dormida, como todo o resto do bairro. Estacionei o carro do lado oposto da rua e fiquei ali sentado encarando a casa, reparando em detalhes, quase como num flerte. Vi o formato pontiagudo do portão de ferro, as janelas de vidro protegidas apenas pelas cortinas internas, a colossal porta de madeira com entalhes e um buganville rosa enorme do lado de fora ao lado da piscina pequena. Estes últimos davam um toque de vida ao local. Reli o endereço no papelzinho que trazia no console do carro e confirmei estar no local correto.
Desci do carro olhando de um lado pro outro da rua, como se esta estivesse movimentada e precisasse atravessá-la com cuidado. Cocei a barba e a nuca e a mão aquietou-se cobrindo a metade inferior do meu rosto quando deparei-me com uma espécie de porteiro eletrônico. Ser ou não ser? Eis a questão. Digitei o número dado pela voz e magicamente o portão começou a abrir-se de forma lenta e pesada. Seu ruído e sua lentidão denunciavam o incômodo de ter sido acordado aquela hora. Temi haver cachorros e encostei-me, atento, no muro alto. Nada. Nenhum movimento ou luzes acesas. A casa ainda dormia. O silêncio me engolfou e tudo que eu escutava era meu coração que havia movido de lugar e agora instalava-se em meus ouvidos. Voltar foi a ideia que entrou e saiu mais rapidamente da minha cabeça em toda a minha vida.
Inversamente proporcional à ideia, dei passos bem lentos em direção aos fundos. A grama ainda estava molhada da chuva da tarde e deixava rastros visuais e auditivos. Não encontrei nada, nem ninguém. Dei a volta pela casa e, de frente à porta principal, reparei que não tinha maçaneta. Este detalhe não poderia ter sido visto do lado da rua, de dentro do carro. Isso tornou a porta ainda mais bonita e imponente. Ela bastava-se sozinha. Empurrei-a delicadamente, respeitando toda sua grandeza. Ela retribuiu o gesto, deixando-me entrar com passagem livre para o saguão principal. Senti um cheiro característico, mas como nunca fui muito bom com identificação de olores, não dei importância e segui com meus passos de gueixa. Era possível não esbarrar em nada por dois motivos: as janelas de vidro permitiam que a luz externa penetrasse as cortinas finas e claras e não havia muita mobília. Fui apresentando-me à casa. Esta intimidade foi me deixando mais calmo e confortável. Aventurei-me a subir os primeiros degraus da escada de madeira e, na metade, virei-me e olhei pra trás. Nada. Eu parecia estar realmente só na casa. Vista de cima, a sala tinha outra personalidade. Parecia mais fria e ampla.
Os andares não pareciam pertencer à mesma casa. Aqui havia um carpete grosso e macio que transmitia aconchego. As paredes eram pintadas de verde claro e sustentavam pinturas de muito bom gosto pelos corredores. Havia 4 portas semiabertas, sendo 2 de cada lado da escada. Espiei por uma delas: tal como a sala, não havia quase nada. Quase enfartei novamente pelo mesmo motivo que há menos de 1h. O telefone tocou. Os olhos arderam, mas desta vez de tão arregalados, congelados por medo. Seria pra mim a ligação? Após procurar nos outros cômodos, achei o bendito e o tirei do gancho, mas sem falar nada. Era a mesma voz. Sem cerimônia, quis saber se eu já o havia encontrado. Meu medo havia dado nó de escoteiro nas minhas cordas vocais. Não consegui emitir um “a”. Sequer respirava. Mas que inferno esta voz misteriosa! Justo quando tinha conseguido acalmar-me e ficar quase no meu estado normal, ela retornou. Também senti raiva de mim: se não tivesse agido pela tentação da curiosidade de novo, estaria ali olhando os outros cantos da casa ainda. Mas não. Estava com uma presença separada por um fio telefônico e sentia sua pressão em cada músculo do meu corpo. Forcei uma voz segura e afirmei que ainda não havia encontrado e que estava correndo contra o tempo. A voz parecia não ser a mesma, pois usou um tom mais amistoso ao dar-me a dica de ir direto para o baú. Assim o fiz.
À esta altura, vesti a carapuça que eu mesmo fiz servir em mim e dediquei-me a encontrar o que quer que fosse de qualquer jeito. Saí do quarto decidido, já nem tentando ser silencioso. Fui tomado por um acesso de foco (raiva?) e abri as outras portas com força, fazendo a casa despertar de seu sono profundo. Sentia seus olhos se virando pra mim. Não me importava. Ia encontrar o bendito objeto, mesmo sem saber o que ele era. Foi com este pensamento em mente que avistei um baú no terceiro quarto, bem ali no meio, em cima de uma mesa de centro ao lado de uma imagem enorme de Buddha. Havia também, do outro lado do quarto, um tapetinho de yoga. Na hora entendi qual era o olor que havia sentido ao entrar na casa: canela. Certamente os donos eram orientais. Como um mosaico vertical, cenas da casa e dos meus momentos ali foram caindo bem em frente aos meus olhos e memória e percebi que fazia muito sentido minha conclusão sobre a origem dos moradores. Olhei novamente pro pequeno baú e com certeza cega, o agarrei próximo ao meu peito e saí de forma tão escancarada da casa que beirava uma falta de educação.
Minha concepção de grosseria nada se comparava à dos policiais do lado de fora da casa. Estavam ali me esperando. Jogaram uma luz penetrante em minha direção que me ofuscou até a alma. Tentei cobrir os olhos com o antebraço direito enquanto o esquerdo ainda segurava o bauzinho. Pelo alto-falante escutei a voz. A mesma voz do telefone. Ela era inconfundível, mesmo que agora em nosso claro e bom idioma materno, e minha espinha dorsal congelou-se vértebra por vértebra. A voz ordenou que eu ajoelhasse, deixasse o objeto no chão e colocasse os braços pro alto. Como das outras vezes, fui tomado por pânico. Ele repetiu a ordem com as mesmas palavras como se fosse um gravador. Até o tom era igual. Não conseguia enxergar, mas sentia a presença de várias pessoas e não seria tão estúpido a ponto de tentar qualquer outra coisa que não obedecer. Olhei pro baú e, cuidadosamente, o deixei no chão de mármore, no primeiro degrau da pequena escada que levava à porta de entrada. Fechei os olhos contra o holofote, abaixei a cabeça e levantei os braços. Silêncio. Em questão de segundos, o holofote apagou-se, o que me gerou ainda mais medo. Fiquei de olhos fechados, apertados mesmo, até não saber o que mais fazer ou esperar. Meus braços já estavam dormentes. Arrisquei abrir os olhos bem lentamente e a visão foi se fazendo menos embaçada aos poucos. Quando abri por completo, senti-me atônito, sem chão. Não havia mais nada, nem ninguém no local. Nem o baú. Somente restava o figura ridícula do meu ser que havia transpirado tanto que a camisa estava colada e manchada de suor em várias partes. Demorei alguns minutos para reunir forças nas minhas pernas pra levantar-me e este pouco tempo foi muito. Foi o tempo necessário para a segunda leva de policiais chegarem, apontarem armas para mim e gritarem para eu não me mexer.
Na delegacia, relatei meu caso enquanto arrumavam-me um advogado. Claro que ninguém acreditou na minha versão de que eu tinha sido feito de “laranja” para uma operação que eu totalmente desconhecia. Todos ali tinham certeza de que eu era, além de ladrão, um mentalmente desequilibrado. Estranharam mesmo o fato de eu não estar em posse de nada da casa e de estar do lado de fora, ajoelhado no chão quando eles chegaram, mas como nada fazia sentido, tinham que deter-me ali até que houvesse evidência suficientemente boa para provar minha inocência.
Lógico que sou, não tenho e nem acredito em poderes psiquícos, mas nesta noite minha premonição (não encontro melhor palavra!) de que só poderia esperar-se uma tragédia com uma ligação naquele horário foi confirmada. Aqui não havia lógica que explicasse a minha falta de lógica das horas passadas. Deixei a corda arrebentar pro meu lado e sentia-me ainda preso na linha cada vez mais tênue entre curiosidade e burrice, ingenuidade e aventura.
Mas afinal, o que que tinha na porra do baú????? hahahaha