Mesa 4

Ela era uma chef que acreditava no divino: astrologia, quiromancia, bruxaria, apantomancia e etc… Todas as formas de adivinhação que terminavam em “ia” significam que lá “ia” ela atrás de informações. Após ler seu futuro no site preferido, confirmou que estava no momento exato para mudanças: momento não, mas sim no dia e horário exatos. Foi.

Abriu seu modesto, mas muito caprichoso bistrô numa concorrida esquina da pequena cidade pra qual se havia mudado e agora morava. Havia recém chegado com a mala cheia de roupas, a alma cheia de esperanças e a cabeça com poucas lembranças. Estas últimas ela preferiu deixar para trás para criar outras e novas. As comparou com um bom prato de comida: bonito e apetitoso por certo tempo. Depois, passado do ponto, pereceria. Assim como era necessário esvaziar o estômago para comer o próximo prato, ela resolveu esvaziar a cabeça para permitir com que novos fatos se tornassem novas e futuras lembranças.

Como tinha por hábito procurar coincidências por todos os lados e com qualquer assunto que fosse (afinal, se acreditava em astrologia e outros “ias”, coincidênc”ia” também fazia parte do pacote divino), sempre imaginava quem degustaria o prato que criava cada dia.  Imaginava que repetiria, quem recomendaria, quem não gostaria e quem voltaria. Noutro dia, decidiu-se escolher um prato específico como seu favorito daquelas 24 horas e iria saudar cada um que o pedisse. Já que queria novas lembranças, resolveu criar novos pratos e, por uma possível e feliz conseqüência, também novas experiências e novos amigos.

Dia 1: nada aconteceu, pois ninguém pediu a torta de limão, somente a de chocolate (receita que rapidamente se espalhou pela cidade e fez fama dentre os habitantes locais).

Dia 2: conheceu uma simpática dona de loja de roupas 2 ruas acima. Combinaram  trocar serviços, uma forma de escambo. Ela prepararia suas costumeiras delícias e receberia blusinhas, saias ou vestidos em troca.

E por aí foi. Acabou tornando-se não somente um hábito, mas também um passatempo, uma diversão. Ocupava seus pensamentos e o tal exercício estava atingindo seu objetivo de criar novas lembranças. Sorria a cada novo prato, cumprimentava cada novo tempero como fazia depois com as pessoas que depois os provavam.

No dia 27 acordou ainda como que presa em seus sonhos: parecia que tudo tinha mais luz e sentia cada passo como se seu apartamento estivesse momentaneamente sem gravidade. Podia ser o efeito da garrafa de vinho que abrira na noite anterior para cozinhar certo molho e acabara esvaziando-a inteira, tomando até seus últimos 2 goles. Arrumou-se lenta, mas cuidadosa e caprichosamente, cujo charme era o coque despenteado. Aplicou um pouco de sol nas bochechas, efeito conseguido através do blush rosado, beijou o papel toalha para remover o excesso do batom e, ao se dar uma olhada de relance no espelho da saída, piscou para si mesma, confiante com a imagem que a sorria de volta.

Aumentou sua aposta e o prato favorito do dia seria hoje substituído por “cardápio favorito do dia”. Escolheria a bebida, a entrada, o prato principal e até a sobremesa. Tamanha fartura que ela avistara minutos antes no espelho de casa requeria um pedido proporcional para que caíssem na graça de conhecê-la. Hoje teriam que fazer por merecer. Até pensou que tanto exagero significava também uma complicação para que ela conhecesse algum(a) estranho(a) hoje. Mas foi em frente com a decisão: quem hoje escolhesse a caipirinha de uva verde com manjericão, a salada com tomatinhos frescos e torradinhas cobertas com queijo de cabra e pinoli, seu duo di risotto (um de aspargos e o outro de brie com cebolas caramelizadas) servido em chamosas panelinhas e ainda tivesse apetite bom o suficiente para encarar seu magnífico crème brûlée…tã-dã! Seria o vencedor do dia. A cada colherada, a cada panela que pilotava com maestria e a cada gole de água gelada com as folhinhas de manjericão parceiras da caipirinha, ela sentia seu coração roncar.

Quando o primeiro pedido da caipirinha adentrou a cozinha através da voz do Tom, o mais novo e charmoso de toda a equipe de 5, seus olhos pareceram avistar somente o copo saindo porta afora como se tivesse vida própria. Pôde escutar o manjericão sussurando “round 1! Plim!”. Foi tomar um pouco de ar, afinal alguém escutar uma folha conversar é sinal de que as coisas estão um pouco fora do normal. Ao voltar, teve tempo de escutar o sino de mesa tocar para avisar novamente ao Tom que havia algo para ser levado para a mesa: a saladinha. Engoliu mais uma rajada de ar quente das panelas furiosas, como se fosse goles de vinho, e sentou-se no banquinho de madeira mexendo nas cebolas. A esta altura, deveriam ter terminado a salada. Levantou e espiou pela porta. Nada ainda, nenhum novo pedido. Foi fechar a conta de uma mesa grande de aniversário e perdeu o pedido do prato principal. Só conseguiu escutar Tom chamando uma companheira para ajudá-lo, pois precisava servir pratos quentes para 2 mesas ao mesmo tempo. “Round 2! Plim!”. Seus ossos gelaram ao pensar nos pratos quentes. Foram se aquecendo novamente quando as panelinhas com os risotos passaram esfumaçadas perto de seu punho direito. Não era possível! Sentia-se como se a ganhadora de um prêmio muito especial e misterioso fosse ela mesma. O tintilhar dos talheres e as vozes abafadas em meio à risadas a ensurdeceram um pouco e a faziam sentir como se o tempo ali dentro fosse medido pelos batimentos do seu coração. Era só este tum-tum-tum que conseguia escutar. Dali a pouco explodiria, tinha certeza. Tum-tum-tum. Ia ficando mais forte, mais perto e as pessoas, mais longe. Até que Tom apareceu na cozinha, mexendo no bigode invisível, semicerrando os olhos, segurando-a pela cintura e fazendo um biquinho para falar, bem lentamente: “um crrrrrreme brrrrruuuuuuleeeeeee, madame, porrrrrr favorrrrr, parrrrrra mesa quatrrrrro!”. Enquanto ela e Tom riam um para o outro, ela imaginou ter visto um sorriso extra de Tom enquanto ele ia anotar novos pedidos. Ao entender o pedido de sobremesa, ela saiu do ar e entrou para a fogueira. Dois dos quatro elementos naturais brincavam com ela, levando com eles o terceiro: a terra. Todo seu chão parecia ter sumido debaixo dos seus pés. Agora teria que pagar a aposta para si mesma. Abriu a portinha estilo saloon e foi para o restaurante, direto para a mesa 4.

Pigarreou sutilmente e pediu licença ao ocupante. Percebeu-se um pouco sem palavras e até um pouco confusa, mas seguiu seu script com um pouco de coragem vinda dos acenos positivos dos outros ajudantes do restaurante. Apresentou-se como a dona do local e gostaria de saber se estava tudo como desejado. Ao receber um simpático e cordial sorriso que sim, agradeceu e explicou sobre “o cardápio favorito do dia”. Gaguejou um pouco ao parecer contar isso para os próprios pés e ele retribuiu a timidez dizendo que vinha ao restaurante pelo quatro vezes por semana. Compartilhou que havia demorado, mas que finalmente ele tinha conseguido acertar todos. E arrematou com: “valeu a demora…”. E convidou-a a se sentar.

Pronto! Ela sabia. Sempre havia sabido. A vida tinha mesmo maneiras engraçadas de nos mostrar as obras do divino… Tom ter sido o misterioso cliente da mesa 4 a surpreendeu pelo gostoso joguinho, mas não pelo fato em si. Sempre atento, Tom era quem a mais conhecia desde de sua chegada na cidade, apesar do pouco tempo em seu restaurante. Ali entendeu o porquê de ter se tornado uma chef. Porém entendeu ainda mais que a bela dinânica de uma excelente refeição é composta tanto por quem cozinha quanto por quem serve: esta parceria era a ideal. Se completava. Onde mais conseguiria algo tão bom de se comer se não ali, no seu próprio restaurante? Por truquezinhos da vida, a chef era hoje a pessoa mais satisfeita do restaurante, mesmo de estômago vazio.



2 Comments Add yours

  1. Od says:

    Muito legal. Muitas vezes a gente sonha com algo e este sonho muitas vezes parece impossível.
    Eis que, quando menos se espera, seu sonho se realiza e o sabor da vitória é o mais delicioso do mundo!
    As coisas que são conseguidas com facilidade jamais tem o mesmo valor.
    Excelente, curti muito!!

  2. Carla Mota says:

    Que lindo Ju ! Eu faço estes joguinhos o tempo todo…é divertido ! Eu não acredito em coincidencias e sim em sincronicidade…tudo esta interconectado de alguma forma. Viajei na sua estória. Obrigada ! um beijo

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