Aos 84:
Sou uma senhora bem senhora. Sei que a morte está cada vez mais próxima. Desde que nascemos, sempre soubemos que, um dia, morreríamos, mas depois dos 77 (comigo esta idade foi marcante), vejo cada dia que passa sempre como um bônus.
Idosos como eu acabam ficando, ao olhar dos outros, como crianças. Tudo que fazemos é justificável e, por vezes, até engraçado. Escuto pelos corredores ou cochichos nada indiscretos que se se compadecem de mim, afinal “estou velhinha, tadinha”. Não acho mesmo que desconfiem do mar de estórias e histórias que sou. Tenho muita coisa vivida e muita para contar. Lembro-me de detalhes da minha vida que, certamente, nem quem estava comigo naquele momento lembra-se tão bem quanto eu. Orgulho-me disso. Deve ter sido o fato de eu ter sempre escutado mais que falado e de adorar resolver quebra-cabeças e palavras-cruzadas. Dizem que todos estes estimulam a memória. Ah, também quase nunca bebi. Uma taça no Natal, outra no Ano Novo e um Vinho do Porto quando recebíamos visitas, mas repassava minha tacinha para meu amigo e falecido marido. Ninguém percebia e todos ficavam contentes.
De qualquer forma, não vim falar disso. Vim fazer um relato, contar uma das minhas estórias. Neste caso, também histórias. Talvez deva somente introduzir o pequeno detalhe de que minha família é bastante grande e, exceto pelos hipócritas, é sabido que sempre temos um dos filhos como o predileto e isso também serve para os netos. Bisnetos fogem à esta regra, pois todos nos fazem pensar na dádiva que é ainda estarmos vivos, então o amor por eles é, de certa forma, amor por nós mesmos. Portanto, por permitir-me já há certos anos não ser tão polida ou política, assumi para meu neto favorito (mas só para ele) que ele era o favorito. Não tinha como não ser. Era verdadeiramente meu companheiro, tinha paciência para minha companhia e, em alguns momentos, cheguei a preocupar-me imaginando se ele era um desajustado, sem amigos e que se isolava da vida me usando como escape. O questionei sobre isso. E fiquei radiante ao saber que estava errada. Era simplesmente amor. Adoração. Admiração. E ela era mútua. O rapaz tem hoje 18 anos. Literalmente, hoje. Completou seus 18 anos hoje e, por atingir sua idade adulta (sempre achei isso uma idiotice… ontem ele era um tosco e, como um passe de mágica, torna-se um adulto, pronto para encarar o mundo ao virar da noite?!) perante à lei, resolvi, depois de sua festa em casa, chamá-lo para conversar. Perguntei se ele queria conversar. Depois do “sim”, expliquei que era algo a mais. Perguntei se queria saber do meu maior segredo, da minha maior emoção. Sem exageros, sem contornos, simplesmente fatos. Ele aceitou a primeira parte, mas foi explícito que queria os detalhes, os extras, tudo que tornaria o relato como sendo verdadeiramente meu, afinal fatos ele lia em jornal. Sorri diante à perspicácia e pensei que, talvez, a lei tivesse um pouco de razão quanto à maioridade.
Sentamo-nos frente à frente; eu em minha poltrona favorita (bem típico de velhinhos!) e ele no tapete felpudo e branco com as pernas cruzadas e os braços esticados ao lado. Mantinha-se em posição ereta, como se dizendo ao corpo que não relaxasse, que precisava ficar atento. Mais uma vez, admirei-o e sorri por dentro. Talvez por fora também. No começo olhava diretamente em seus olhos, mas a vivacidade e a curiosidade tão exuberantes em seu olhar me fraquejaram um pouco. Suspirei, recostei-me e apoiei a cabeça na almofada. Fechei os olhos, explicando-lhe que era mais fácil de recobrar os detalhes. Ele concordou com um simples “hum-rum”.
Disse que tinha escolhido aquela data por agora ter se tornado, oficialmente, um adulto e que, do meu lado, o que lhe contaria ocorrera há exatos 50 anos. Achei que a casualidade de contar uma estória de meio século de ocorrência no dia que alguém se torna adulto não é para qualquer um. E como ambos éramos especiais demais, nada mais normal que ali estivéssemos. Outro paciente “hum-rum” encheu o quarto, apesar de quase inaudível. Pedi-lhe outra vez que aquele fosse o nosso segredo.
Aos 53:
Realmente tornei-me adulto naquele meu aniversário de 18 anos. Ouvir o último suspiro de minha adorada avó ao terminar o relato, o seu segredo de alma foi, ao mesmo tempo, o maior presente de aniversário que ganharia por toda a minha vida e também o mais doído. Teria ela vivido tanto por carregar consigo este peso ou teria ela falecido por não aguentar tê-lo compartilhado? Simplesmente transformador.
Sou o neto da Dona Anna e o que era para ser um simples fragmento da vida dela e de suas lembranças foi o que guiou minha vida. Suas palavras pareciam voar pelo quarto. De tão vivas e reais, eram quase palpáveis. Elas pareciam formar pequenos vultos em forma de pássaros que rodopiavam pelo quarto, ocupando todo seu espaço. Eu as via e sentia vontade de guardar uma a uma numa caixinha para depois não me esquecer de nada. Não as guardei em lugar nenhum. Nem mesmo dentro de mim. Me foi impossível guardar em segredo comigo como ela me pediu, pois era lindo demais para ser guardado. Tudo que ouvi, senti e quase toquei acabou tornando-se minha bússula, minha conduta de vida. Então, pensando assim, vejo que compartilhei, ainda que secretamente, o segredo de minha avó em pequenos fragmentos com as pessoas com quem convivo. Para alguns foram doses homeopáticas; para outros, doses cavalares. O que importa é que, até hoje, quando penso nela, a vejo assim: como minha mestra. Ainda viva, presa numa vida que escolheu e livre para viver a que quis. Desta forma, ela me libertou, também em segredo, para que eu vivesse (e escolhesse!) a vida que eu viria querer. E quis. E vivi.
Que linda estória! Adoro, amo a sua criatividade… 🙂
Que coisa linda… fico feliz por ler coisas tão bonitas e ver pessoas fazerem o que chamo de “bom uso da web”. Quando quiser e puder você será bem vindo no meu blog: cynarabastos.blogspot.com Abraços!