Dentista para o estômago

Saiu da consulta com seu super simpático e competente dentista meio sem direção. Ele é o tipo de profissional da velha guarda, apesar de ser jovem. Muito compenetrado, dedicado a cada caso, atento e atencioso (reparem que há diferença entre estes adjetivos) e muito qualificado. Ela sentia-se afortunada por ter recebido o nome como indicação e ser atendida por alguém raro, pois afinal de contas, “não se fazem médicos como antigamente”. Ela pensava isso a cada consulta, apesar de ser jovem (logo, não sabia como era “antigamente”) e sorria satisfeita por ser tratada por tal profissional. O indicaria até para sarar unhas encravadas, mas tinha bom senso o suficiente para não fazê-lo.

Então, como relatei, ela saiu da consulta sem direção certeira. Não que desconhecesse por completo o local onde estava. Sabia mais ou menos. Resolveu perguntar ao dentista que acabara de lhe colocar o aparelho móvel na boca onde havia um bom local para sentar, comer e, em paz, ler seu livro para matar o trânsito. Desacostumada com o novo aparato, deu uma babada ao falar, pois já salivava mais que o normal, mas o normal para aquela situação (segundo ele). Ele, acostumado, foi até o balcão e pegou um lenço. Ela, desacostumada, sorriu sem jeito e aceitou o lenço para enxugar a pequena baba que já havia limpado com a mão. Afastou o constrangimento concentrando-se na explicação sobre o tal bar.

Lá chegando, sentou-se à mesa do lado externo posta exatamente na esquina e viu a placa anunciar 2 nomes de ruas: a Rua Amparo ficava para a direita. Ao lado esquerdo seguia a Rua do Livramento. “Estou bem aqui: me livro dos problemas com a caipirinha e me sentirei amparada. Eba, que venha logo a bebida!”

Como estava só, puxou seu companheiro de sempre (um livro) e o folheou até a página 114, onde havia parado a leitura. Sem ter com quem conversar, a bebida foi descendo mais rápido e olhos passaram a ler mais devagar. A segunda caipirinha chegou na página 138. Considerou comer algo, mas como acabara de colocar o aparelho, preferiu não pedir nada. Estava realmente concentrada na leitura quando sentiu vontade de ir ao banheiro. Uma pena ter que interromper sua visita ao mundo literário, mas levantou-se decidida a ir quando a coisa apertou. Aí percebeu que este ato exigiu mais concentração do que a leitura. Sorriu sozinha e pegou o copo para finalizar o golinho ali formado pelo gelo.

A caminho do toilete, pediu mais uma. Assim, sem pensar. Quando voltou, a caipirinha reinava em cima da mesa, ao lado do livro. Foi bebendo, olhando para a placa da esquina com os nomes engraçados. Ficou ali viajando por uns minutos quando escutou uma voz ao seu lado: “Ainda por aqui?” Demorou para perceber que era com ela. Quando se deu conta, ergueu os olhos em direção à pessoa dona da voz, enquanto ainda mantinha os lábios travados no canudinho. Os olhos demoraram para formar a imagem à sua frente. Era o dentista. Tentou se levantar para cumprimentar, mas deu uma cambaleada. Pensou: “Ótimo, babona e bêbada…”. Sorriu e confirmou que sim, ainda estava ali naquele bar agradável e agradeceu pela indicação. Torceu para que ele falasse algo do gênero: “Ok, boa noite, aproveite aí.” Mas não. Perguntou se podia sentar-se, pois estava a caminho de casa, mas lembrara-se que não tinha nada para comer lá e sentia fome. “Claro! Fique à vontade.” , falou enquanto endireitou-se na cadeira, tentando retomar a postura ereta que já era ida fazia sei lá quantos goles e páginas atrás.

Fizeram um brinde e ela puxou todos os guardanapos para mais perto, caso precisasse. Ele puxou conversa. Pronto, ela teria que falar; logo, precisaria dos papeis amigos. A pedido dele, conversaram sobre vários assuntos, exceto odontológicos. Ele pediu que contasse um pouco dela, de sua vida. Ao falar, salivava. Foi se coordenando como conseguia. Estava com dificuldade de falar devido ao teor alcoolico e ao bendito novo ser que habitava sua boca. De qualquer maneira, o assunto fluía de maneira prazerosa.

Ele pediu uma segunda caipirinha e, achando ser gentil, já incluiu uma outra para ela no pedido. Equilibrando-se entre fala, canudo, aparelho e baba, ela não conseguiu nem gesticular um “não” com a cabeça. Pronto, pedido feito e, quase que como num passe de mágica, as caipirinhas apareceram. “Meu Deus…” foi só o que seu cérebro formou. Conseguiu reverter o jogo sendo engraçadinha e dizendo que, por culpa dele, não conseguia falar direito com o aparelho, portanto, quem deveria conduzir a conversa era ele. Foi aí que ele deu a brilhante ideia: “lembre-se que seu aparelho é móvel… que tal retirá-lo para ficar mais confortável?” Ela achou a ideia tão boa quanto se sentiu estúpida por não ter pensado nisso antes. Como estava com o dentista que a via de boca aberta sempre e já possuíam este grau de intimidade bucal, resolveu tirar o aparelho ali mesmo. Que engano. O bicho estava bem apertadinho e ela foi sentindo ânsia. Avisou, entre palavras mal compreensíveis, que ia ao banheiro. Voltou pálida, olhos lacrimejados, meio descabelada e só com a parte de cima do aparelho retirada. Ele estranhou a cena. Ela confessou ter vomitado horrores (álcool ou excesso de saliva?). Pediu desculpas e falou que ia para casa. Antes, visitou o banheiro de novo. Que vergonha absurda. Quando retornou à mesa, ele já possuía um kit salvação de bêbados com aparelhos móveis. Ela não sabia do que se tratava, mas ele falou para engulir de uma só vez e, sendo “médico”, ela obedeceu. Não é que, ao bater no estômago, ela sentiu alívio? Parecia milagre!

Voltando ao normal em poucos minutos, conseguiu remover a parte inferior também, lavou o rosto, pediu água com gás e desembestou a conversar. Uma noite bem diferente, mas que se fez de acordo com a previsão da esquina: esqueceu realmente dos problemas e foi amparada. Certificou-se do que pensara sobre ele: não o recomendaria para unhas encravadas, mas para quase qualquer outro assunto, ah, o recomendaria!

One Comment Add yours

  1. mumily says:

    Is this pure, sheer imagination ou algo parecido aconteceu??? Hahaha, amei, vc é demais! E continua babando??? 🙂
    Beijos, love you!

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