A raiva do bem

Havia começado a trabalhar na nova empresa havia pouco menos de um ano e parecia ter acertado desta vez. Era uma empresa global, porém pequena. A operação e o segmento não requeriam grandes números de pessoas (somente de receita). O escritório era muito pomposo, cheio de glamour, boas conveniências e, num primeiro momento, ótimos funcionários e clima bem amistoso. Chegou a brincar que se sentia dentro de um reality show ou do filme “O show de Truman”, pois todos se conheciam como se fossem velhos amigos, até mesmo parentes.

Ela não tinha muito este perfil. Era mais focada no trabalho, concentrada, atenta aos resultados. Tinha sim bom relacionamento e era muito bem educada. Mas tinha um perfilzinho fácil, fácil de cair no workaholic-ismo. Ao ingressar na empresa, logo percebeu a carga atrasada da sua área em questão. Pronto, estava feito o combo matador: pôs-se imediatamente a dar vazão ao trabalho há meses parado com o mesmo foco e determinação que uma águia mira sua presa e esqueceu-se de fazer “amizades”. Foi direto para o hard e esqueceu-se do soft.

De repente as coisas mudaram. Na verdade, não sabia dizer se foi tão de repente assim ou se ela que não havia se dado conta antes por estar muito enfiada nas atividades. Quando o trabalho realizado a permitiu olhar mais atentamente ao seu redor, tudo estava diferente. Bem diferente. Seus olhos foram habituando-se ao novo cenário como quem sai do escuro e entra em contato com uma forte luz. Começou a sentir-se extremamente incomodada com a situação. Com as pessoas. Com o ambiente. Com o clima. Com o local. Enfim, até com a parede, se possível fosse. O clima do show do tal Truman parecia agora mais com “Louca Obsessão” do Stephen King. Sentia-se estranha, observada, começou a imaginar coisas (mas será mesmo que eram somente pensamentos infundados?). Reconhecia-se com a habilidade de observar muito bem as pessoas e seu entorno. Sua profissão exigia isso. Se relembrava disso para não cair na fantasia da neurose. Relembrava-se sempre da tal habilidade para poder manter-se sã. Também para mantê-la vigilante. Seus olhos, aliados com o cérebro, fizeram um belíssima parceria de observar dados para juntar fatos. Sabia, então, com certeza que louca ou neurótica não estava. Nesta fase, encontrava-se triste, reclamosa e sem defesas. Ante ao mal inesperado, que bem age de prontidão? O mal é veloz e furioso (outro filme…), já o bem é calmo e ponderado. Então ela ponderou. Até porque não tinha outra escolha. Estava congelada, sem saber o que mais fazer. Ponderou, perguntou, comentou, parou, voltou… Até que, um dia, se irritou. Estava tomando um belo vinho branco, em pleno momento de busca de relaxamento quando, PLIM, se irritou. Se irritou com todos de uma forma tão ardente que ela até gostou. Sentia um frenesi no estômago e esta pequena furiazinha a foi bebendo lentamente, ao contrário dos goles que ela entornava para dentro de si, nem percebendo o gosto, mas sentindo claramente a luz que ele emanava.

Até poderia ser que tivesse demorado demais para agir, mas como já diz o antigo e sábio ditado, “antes tarde do que nunca”, mas como também já dizia o outro ditado companheiro do anterior: “os incomodados que se mudem”. Ela seguiu à risca: se mudou. Partiu para a ação da inversão. Vestiu-se de coragem e convocou uma reunião. Foi com o ciclo quase fechado: “problema-ideia-pedido de ajuda-solução”. Deixou a solução por último para que o ciclo fosse fechado em conjunto. Se era justo o conjunto da obra que não estava em harmonia, ela entendia que, para poder melhorar, havia de ser dada uma providência que a todos fizesse sentido. Sentou-se com quem era de direito e explicou de forma calma que estava muito incomodada com o rumo que as coisas haviam tomado. Como sempre foi da opinião do “50-50%” (se algo está bom ou ruim, cada lado tem sua parcela de mérito ou de culpa, e esteja dito – aquilo era, pra ela, verdade absoluta), foi muito transparente assumindo sua parcela de faltas para com a equipe, questionou se havia questões particulares à ela relacionadas ou se eram mesmo “só” profissionais e desabafou: a equipe havia se separado, havia um muro quase visível e intransponível entre ela e as demais e assim não dava pra continuar. Estava ali, agindo no máximo da sua força interna buscando melhorar (falar assim sobre problemas não lhe era algo tão fácil… aliás, não mesmo). Qual a melhor maneira? O como? Não sabia. Por isso queria ouvi-las, dar espaço, provocar trocas. Preparada para um embate, respirou melhor quando viu que as demais concordaram em buscar soluções e que também foram abertas em assumirem que estava tudo mesmo um lixo. Conversaram.

Conversaram. Isso já foi muito mais do que os meses em que estava ali. Chegaram num consenso de desenharem, juntas, uma nova metodologia de trabalho. Deixaram mais que escancarado que o esforço seria de todas. Cada uma consigo e todas com e para com as outras. Isso me lembrou “os mosqueteiros”. Estavam longe de alcançarem este ideal dos 3 (4) amigos de Dumas, mas ela contentou-se em ver que havia a intenção da mudança.

O resto do dia fluiu muito diferente. Pensou nos mesmos assuntos de formas novas, recebeu problemas com outros olhos e se observou mais neutra. Parecia até ter emagrecido de tão mais leve que estava. Sentiu-se feliz consigo mesma por ter ultrapassado uma dificuldade em prol de uma melhoria.

Se a melhoria viria de fato? Ainda não se sabe. Ainda estamos para ver as cenas dos próximos capítulos. Investiu tempo em si mesma. Melhorando a si, ajudaria a melhor outra parte ou, quem sabe, até o todo. Mundo ideal não, isso é besteira, mas mundo mais alinhado, aí sim. Ainda sem saber dos resultados, já sentia-se melhor, pois o que importa é que ela fez algo. E, se tiver que fazer de novo, será bem mais fácil. Isso, por si só, já valeu. Ironicamente, agradeceu ao sentimento que a moveu para tudo isso e brindou, naquela mesma noite, com um belo trago de uísque. Só uma forte bebida como esta seria capaz de alcançar a raiva, que não mais estava presente, para agradecê-la.

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