No curso de escrita que fiz há pouco, ficou como lição de casa escolhermos um personagem criado por outro aluno e criar um texto de aproximadamente 40 linhas. Segue abaixo a ficha do personagem que escolhi:
NOME: Jana
IDADE: 66 anos, mas parece 48 anos
FAMÍLIA: orfanato; nunca foi adotada
PROCEDÊNCIA: mente divina
RESIDÊNCIA ATUAL: mente humana
PROFISSÃO: Presidente de Laboratório Farmacêutico
CARACTERÍSTICAS FÍSICAS: alta, esguia, manchas na pele
CARACTERÍSTICAS PSICOLÓGICAS: sedutora, manipuladora, carente
MANIAS: ler horóscopos diariamente e tarot semanalmente; rezar o terço todos os dias; frequentar centro espírita para tirar satisfações com o espírito dos seus pais que a abandonaram
DOENÇAS: sangramento de nariz
SONHO: ser sempre o centro de todas as atenções
ÉPOCA: atual
A rainha de paus
As palavras que aqui se seguem descrevem um ser por quem muito me encantei. Ora me via apaixonada, encantada por ela, ora jurava que era ódio o que sentia. Ou seria inveja? Ela conseguia me confundir de tal maneira que me recuso a aceitar, mas creio ser pura manipulação. E das boas! Como isso me remoía por dentro. Eu, justo eu, me deixava ser levada como tantos outros que tentaram desvendar se suas intenções eram boas ou más. Não importa, até porque acredito que ninguém nunca conseguiu ou jamais sequer conseguirá enxergá-la, muito menos compreendê-la, corretamente. O fato é que ela ocupava nossas mentes. Com seu jeito sedutor, entrava em nossas mentes e lá fazia seu ninho. Criava pequenas grandes moradias em cada um de nós, dado que não era possível movê-la de nossos pensamentos. Analisando-a, me questiono se alguém, um dia, conseguiu expulsá-la de algum lugar e por isso ela fazia tanta questão em se firmar por onde passasse? Era uma possibilidade plausível. Eu, no papel de sua psiquiatra, testemunhava tudo isso através de seus relatos.
Como quase uma religião da minha profissão, sou ateia. Creio na ciência. Assim sendo, relevava o fato de ela jurar de pé junto de ter sido obra de Deus para mostrar aos mortais como se deve viver. Dizia ter abandonado a mente divina há muitos e muitos anos de forma exclusivamente empreendedora para invadir a mente humana. Já com isso eu conseguia concordar… Se alguém a questionasse sobre sua procedência, respondia com pronúncia exagerada dos “ssss”: “dosss céussss”. Sim, achava-se magnânima e desejava sempre ser o centro das atenções. Muito compreensível, pois era sua defesa contra seu lado fortemente carente observado em seu perfil: em nossa primeira sessão, questionei-a sobre passado e família, como de praxe. “Não tenho tempo para o passado. E a família não teve tempo para mim. Nem a família, nem ninguém. Cresci em orfanato e nunca fui adotada.” Após esta curta explicação, contemplei-a. Leitura corporal é recurso vital na análise do/a paciente. Reparei nela por inteiro e dei-me conta do quão alta era, mesmo sentada em posição sinuosa. Sua pele era manchada e isso ecoou em mim como uma possível razão para sua carência. Havia estado com algum homem antes? No ato, envergonhei-me de mim mesma quase jogando fora meu diploma quando me questionei isso. A tola da sala era eu, não ela! Claro que havia estado com homem! Aliás, vários deles. Extremamente bem conservada, eu não conseguia acreditar que tinha 66 anos. Parecia pouco mais velha que eu… tenho 47, então 48 lhe cairia bem. Jana (perdoem-me, só agora faço menção ao seu nome) era alta, esguia, charmosa e sedutora. Como não haveria estado com homens? Possivelmente até com mulheres. Poderia seduzir o mais beato e casto de todos os seres. Ri por dentro imaginando-a por cinco minutos ao lado do Papa.
Também sempre ria (para mim mesma, claro) quando ela declarava espiar seu horóscopo chinês diariamente. Dizia ser mais perto da sua idade real e, portanto, mais crível do que o ocidental. Neste horóscopo, seu signo era a Serpente do elemento Fogo. A caía perfeitamente bem isso. Já eu, se fosse um animal, seria um elefante (numa loja de cristais), bem oposta à Jana. Voltando às suas crenças, Jana também sempre dava uma consultada no tarô. Alegrava-se ao contar isso, pois havia nascido no mês de julho e o número de sua carta era justamente o “7”. Quanta coincidência! E o 7… número cabalístico, ainda por cima. Adorava estes temas. Foi devido ao tarô que se apelidou “A Rainha de Paus”, nome da carta da serpente no jogo. Também a servia como uma luva, já que era uma mulher autorealizada: aos 16 anos, recebeu uma carta anônima que lhe revelava ser a única herdeira de uma quantia que ela nem sabia falar de tanto zero à direita.
Esperta desde então, comprou um advogado que lhe serviu como tutor e escravo para serviços aleatórios, e foi estudar. Obcecada pela cura de seu sofrimento causado por constantes sangramentos nasais, formou-se médica com louvores na USP. Abriu seu laboratório farmacêutico e rapidamente tornou-se a Presidente da empresa com filiais mundo afora. Acompanhava de perto todos os testes realizados e se oferecia como cobaia para os experimentos. Descobriu possuir em si uma toxina que afetava sua circulação. Era como se carregasse dentro de si um veneno hemotóxico, como as cobras. Aprofundou-se no tema e verificou que há uma toxina presente neste veneno chamada crotamina que tem funções de tônico muscular. Excelente! Estava aí a solução para se tornar menos esguia e mais curvilínea. Sem mencionar o imenso retorno financeiro que ela assistia brotar em suas contas correntes devido ao uso devido da toxina no mercado esportista.
Infelizmente não consegui ajudá-la a decifrar uma de suas maiores inquietações: Jana não entendia o porquê de, apesar de todos os seus sucessos e suas realizações, ainda sentir um vazio por dentro, uma inquietude voltada especificamente à sua profissão. Minto. Aquele sentimento se aproximava bem mais de uma frustração. Havia sempre sentido um desejo profundo por outra atividade que sabia bem qual era, mas que nunca tivera coragem de admitir para ninguém. Acabou admitindo-a para mim e, talvez exatamente por isso, tenha sido este o dia de nosso último encontro. Esta foi a última vez que vi Jana. Pouco antes de sair de meu consultório notei-a usando um tom de pedido de perdão que não combinava com ela. Assumiu o peso da tristeza de não ter seguido o seu sonho em ser, na realidade, uma famosa e rica agricultora de maçãs. Somente maçãs.
(a criadora do personagem fez uma alusão à serpente “naja” do Éden… essa era a ideia…).
Aposto que a sua foi a melhor nota da turma… Se é que existe nota para isso… Show!!