(mais um post escrito em parceria com Ronnie Biermann – e que venham os próximos!)
Quando ali chegou, suas prévias suspeitas (que também poderiam ser simplesmente traduzidas pelo mais polido sentimento de pavor) tornaram-se certeza: aquele lugar havia sido construído pelo próprio demônio. Não haveria, no mundo humano, um ser capaz de criar uma estrutura tão perfeitamente insuportável. Requereria traços infinitamente loucos e demasiadamente malditos para tal façanha. Observou. Respirou. Exalou com nojo. O cheiro rapidamente o remeteu a enxofre (mais uma confirmação da temida suspeita que virara afirmação) e então sentiu, ou melhor, se lembrou que ainda possuía um estômago, pois o mesmo se mexeu com raiva dentro de si. O chutou e ele caiu em seus joelhos que, na hora, esbravejaram por terem que aguentar a detestável sensibilidade do tal órgão. Levantou-se e passou as mãos distraidamente nas pernas, de forma escusa e sem muito reparar se o fazia nos locais corretos a fim de tirar o pó e a terra resultantes da leve queda. Notou com certa riqueza de detalhes que os tons ao seu redor eram perfeitamente iguais. Como, então, tons? Tal como certa ilusão de ótica, pareciam misturar-se entre si, dando impressão de tons diferentes de uma mesma cor. Fosse isso verdade, até geraria nele uma certa alegria… mas não, eram simplesmente todos iguais, todos absolutamente cinzas. Torturadoramente cinzas. Um sutil mexer de lábios esbouçou-se em sua face, estava perplexo, perdido, apavorado… e espantou-se ao perceber que chegou até a admirar a “obra” por alguns segundos – sim, a obra, afinal aquilo não poderia ser diminuído e chamado simplesmente de um “lugar” – mas rapidamente a lucidez o cutucou e voltou a si. E repugnou-se novamente. Desta vez consigo mesmo pela brutal vergonha em sequer ter sentido certo apreço por aquilo do que pelo local propriamente dito. O estômago lhe falou novamente e os joelhos enviaram um sinal quase ameaçador de que se permanecesse de pé.
E, travando uma luta interna para manter-se em pé, avistou na penumbra de um longínquo canto do pequeno espaço fechado algo que o chamou a atenção: parecia ser uma passagem para outro aposento. Não ousava, naquele momento, aproximar-se da presumida passagem, pois o pânico que ali o recepcionara, o impedia de distanciar-se da área onde a luz era mais densa.
A lucidez começava a abandoná-lo novamente e, no estado de amortecimento que seu corpo principiava a tomar, percebeu que um de seus sentidos aparentemente ainda funcionava melhor que os demais: o paladar. Estranhou tanto essa percepção quanto a sensação em si. O gosto encarnado de sangue dentro de sua boca começava a encharcar sua garganta, aparentemente oriundo de um sangramento na gengiva, pois já sentia seus dentes levemente amolecidos sendo pressionados por uma impossível terceira dentição. Mas como? O quê estava acontecendo? Seus pensamentos davam voltas em sua mente e esta, por sua vez, dava voltas no campo físico tentando desvendar suas novas concepções. Seu paladar destacava o morno e rubro gosto de carne crua, que em sua ainda ofuscada e confusa visão começava a realçar um pulcro contraste no mundo cinza a sua volta. Cinzas e vermelho: agora sim havia algum sinal de significativa arte iniciando-se ali. A noção de tempo já o havia deixado há muito. Ou seria há pouco? Desistiu de tentar entender e rendeu-se aos sentimentos, aos seus novos visitantes internos que pareciam ter vindo para ficar.
Um zumbido, inicialmente em baixíssima freqüência começava a se intensificar dentro de sua cabeça, como se fosse uma motosserra barítono que exaustivamente interrompia toda e qualquer tentativa de se concentrar e buscar uma explicação para aquilo, um motivo, um fôlego de perceptibilidade ou até mesmo uma simples memória qualquer para se distrair. O ruído tornara-se o implacável guardião de seus pensamentos. Não lhe sobrava alternativa a não ser continuar aquilo que não se sabia como ou há quanto tempo havia começado. E o tempo passou. Rápido ou lentamente? Impossível dizer, portanto não importava mais.
Suas unhas já estavam gastas de tanto esfregá-las no abrasivo cinza das paredes envelhecidas e rochosas. E esperava ansiosamente com que elas crescessem para poder arranhar novamente. Era a única forma que conseguia de fazer sentir-se vivo dentro daquele quadrado mínimo – pela primeira vez passou por sua cabeça a dúvida se aquela obra realmente seria a representação geométrica perfeita nas proporcionalidades de um maldito quadrado – esquecido por tudo, por todos, até mesmo por Satã, seu construtor. Suas cansadas costas, agora acentuadamente curvadas na região cervical, podiam apenas ser temporariamente aliviadas pela nova postura que resolvera instintivamente adotar para o conforto de sua atrofiada musculatura. Nunca havia reparado que andar de quatro não era tão ruim assim. Foi a primeira vez que sentiu dar um leve sorriso após quanto tempo? Pouco ou muito? Não importava mais mesmo, não é? Novamente a sensação era o mais importante de tudo.
Entendeu, por fim, que não havia sido enviado para aquele lugar aleatoriamente e muito menos por qualquer tipo de castigo. Era o oposto, meu Deus! Quanta estupidez, quanta inocência e quanto autoflagelo desnecessários e, pior, descabidos! Havia sido escolhido para a missão mais especial que um como ele poderia ter no pós-vida. Percebeu que a escuridão não mais o intimidava, e que de fato agora era muito mais confortável manter-se distante das luzes mais densas. Moveu-se. Ao aproximar-se daquilo que agora podia constatar ser mesmo uma passagem, foi enfim capaz de ler a inscrição entalhada no batente de pedra – e por um sucinto lampejo de memória recordou que já havia lido aquilo em algum outro lugar, porém não sabia quando, nem onde. Curiosamente pode ler com clareza e perfeição de entendimento a mensagem escrita em um idioma que jamais tivera contato. A inscrição dizia: “Abandone toda a esperança aquele que aqui entrar”. Aquele tempo havia sido seu treinamento, sua chance de mostrar-se merecedor de adentrar o inferno com louvor. Cumpriu a missão à risca e foi recebido pelo construtor da obra com um sorriso de orgulho como um pai que aprova uma ação perfeita de seu filho. Em reverência, o filho abaixou o tronco diante de seu criador e agradeceu pelo estágio no inferno na Terra: lá havia sido seu playground. Agora era a hora da verdade. Agora começava o espetáculo real de pertencer a algo que sempre havia sido seu.