Aos seus 82 anos, os desenhos pelo corpo permanecem lindos e, como alguns já devem ter pensado, sim, permanecem também legíveis e não estragados pelas rugas causadas por excesso de felicidade, sol, álcool, muitos sorrisos e coisas que não vou descrever aqui. Ah! E, por favor, nada de a chamarem de “senhora”: ela se considera uma velhinha, uma moderna, uma querida, a avó, ela mesma, a doidinha, um pouco esquecida, enfim várias coisas, mas não uma “senhora”. Ela acredita que “a senhora” deixou a alma envelhecer. Ela não. Inclusive, ela mesma relata que a alma dela continua sorridente como sempre foi, brincalhona e, como se dizia na nossa época, uma free rider nesta viagem da vida. Em suma, uma porra louca com tantos atributos e tantas complicações como qualquer bom ser humano.
A surpreendi um dia com este pequeno relato que hei de contar e lembro-me exatamente da reação dela: mandou-me um palavrão gigante por e-mail (sim, era o que usávamos na época), disse ter aberto seu enorme e contagiante sorriso e que me mandava um abraço tão gigante que não caberia na gente se estivéssemos frente a frente. Gargalhou e se sentiu especial. Ótimo, fiquei feliz. Na verdade, fiquei feliz não só por ela ter gostado, mas também no dia que resolvi escrever o que aqui se segue, pois foi no dia que ela compartilhou comigo a degustação das fotos do seu casamento. Eu fui convidada, sim, para o evento (além de tudo, a velhinha em questão é fina e educada), mas não pude ir. Nem me lembro mais do motivo, claro, pois faz tempo, mas qualquer que tenha sido, imagino que não tenha sido verdadeiramente tão sério a ponto de perder o casório de uma pessoa querida. Enfim…
Como ia dizendo, me senti muito feliz no dia que vi as fotos pelo simples fato de ter visto o que não vi ao vivo no casamento: o brilho no olhar dela estava ainda mais ofuscante. Mesmo pelas fotos, parecia saltar uma luz das jabuticabas que a moça carregava no globo ocular. A alma parecia não caber dentro dela e talvez fosse justamente isso mesmo que a fazia reluzir: sua aura. Seu recém tornado marido estava igual. Juro ter visto um pequeno raio prateado em direção da nossa querida em uma das fotos. Ela parecia mais alta nas fotos, talvez por flutuar dentro delas no melhor estilo “jornal do Harry Potter”. Eu tinha certeza que ela acenava, piscava e lentamente se mexia ali dentro daqueles quadradinhos que tentavam prender uma alma tão desprendida e feliz. Eu acabava sorrindo junto.
E, justamente por esses sorrisos, precisava agradecê-la por ter compartilhado aquelas fotos comigo naquele dia. Ela nem sabe, mas eu estava tendo um dia dos diabos. Com o coração triste, os olhos pesados e ombros que faziam um esforço descomunal para não desmoronarem em meus pés, senti a energia começar a voltar dentro de mim como um calorzinho que vai te aquecendo num dia frio. Ela me trouxe uma alegria que veio sei lá de onde. Já na primeira foto vi o que parecia ser uma tatuagem: era um escrito na parte de trás de uma das pernas (como já disse, faz tudo muito tempo para lembrar de detalhes…). E é aí que entra a graça da coisa: quando eu perguntei o que era, ela me contou que, sim, era uma tattoo registrando “gratidão eterna” em latim. Ou seja, senti exatamente isso sem me dar conta quando vi a foto. Agradeci pelo sentimento de alegria que me proporcionou ter visto os noivos em tamanha alegria, tamanho brilho, tamanha expressão de pura felicidade e de amor. Essa alegria foi tão congiante que revi meus conceitos de casamento. Ela era a free rider, eu, a lone ranger. Nunca tinha tido vontade de me casar, sempre defendi que casamento perfeito era aquele em 2 casas separadas e “casar vestida de bolo?! jamais!!”, mas ali, naquele álbum, percebi que poderia ser algo legal. Talvez eu simplesmente estivesse carente de uma boa festa de arromba, mas agradeci de qualquer forma.
Conheci a velhinha de forma não tão comum: eu era gerente de recrutamento de uma indústria multinacional e ela, de marketing. Não a contratei somente para a empresa, mas para minha área. Aí que entra o interessante: pensamos em criar algo relativamente novo na época e o foco era ter uma pessoa de marketing para entender mais as tendências do mercado, analisar os dados, revigorar o recrutamento e a atração de potenciais candidatos através de ações direcionadas e ela me veio recomendada por um ex-paquera meu de uns 10 anos antes desta data e que virou um dos meus melhores amigos. E eles dois haviam se conhecido meses antes numa viagem de ano novo (detalhe: a mesma viagem que a apresentou seu marido – que ano novo, hein!). Depois há quem diga que o universo não mexe seus pauzinhos. Haja ignorância… E assim fez-se a amizade. Aqui vale comentar da segunda tatuagem. Engraçada a ironia de ter escolhido justo o idioma grego para a primeira tatuagem que vou citar: escreveu “amizade” neste idioma. Espero que não tenha recebido muitos presentes deles! Acho que não. Ela tinha um tino para acertar amizades (sim, modéstia à parte…). Na entrevista já sentimos uma afinidade incrível e, em dias de quando já contratada, estabelecemos uma amizade silenciosa, sem rótulos e criamos uma confiança sem origem e sem explicação. Os papos, os desabafos, as piadas, os conselhos, os ensinamentos trocados em tão pouco tempo, as cervejas bebidas, mais risadas e segredos trocados geraram uma amizade sem exigências e, da pouca convivência física na mesma empresa (saí não muito tempo depois de lá) e creio que, mais que tudo, a afinadade invisivelmente visível que sempre tornava tudo muito reconfortante por saber que ela estava lá, a um clique de distância.
Claro que, sendo espiritualizada e evoluída desde que nasceu, autêntica, um ser pensante e com alma, com questionamentos pulsantes, uma vida interna que extrapolava alegria para o externo, ela fez um dos desenhos em seu corpo por simplesmente tê-lo achado o mais bonito do estúdio de tatuagem. Sem nenhum significado aparente, a moça escolheu uma peônia para estampar seu lado direito (ou esquerdo? é… não sei mais). Depois foi buscar que raios poderia significar esta flor e deparou-se com uma grata (olha a palavra aí de novo!) surpresa: há uma lenda, contada na Bacia do Mediterrâneo, de que uma bela ninfa chamada Peônia foi tão cortejada pelos deuses que uma deusa ciumenta a transformou em uma flor com mil pétalas – a Peônia. Desde então, este símbolo de beleza e feminilidade, floresce entre os meses de abril a junho, oferecendo um espetáculo deslumbrante de cores e aromas. Ou seja, ela escolheu a flor que a representa! Neste caso, ela desfez o ditado popular de que “os opostos se atraem”. Ah, é fato também de que a peônia revela sua beleza a quem merece: pode-se passar de 5 a 7 anos, desde o momento da plantação até o desabrochar da primeira flor! Hum, me pergunto: fazia quanto tempo será que ela não se apaixonara daquele jeito de forma tão entregue e sincera até aquele ano novo do encontro do casal de luz? Sorrio ao imaginar a certeza que tenham sido 5 anos. Assim tudo fica mais romântico ainda.
Então, como não poderia deixar de ser, encerro minha narrativa com a imagem da sua quarta tatuagem: ela me contou que era sempre grata por todos aqueles que a ajudaram a ser quem era, aos que a deixaram ser como era, aos que questionaram quem ela era (adorava contar seus casos!) e aos que estiveram com ela (física, mental e espiritualmente) durante todos estes anos pras coisas boas e as nem tão boas assim. Deixo aqui, para cada um, seu eterno sorriso que é cativante e simplesmente inesquecível. De certo modo, eterno: assim como o “infinito” tatuado na parte interior do lábio inferior…