Saiu do carro sem a menor ideia do demônio enfurecido que encontraria poucos segundos a frente. Sentava no banco de trás, atrás do motorista e vinha observando a paisagem de forma silenciosa, olhando pro seu lado esquerdo. Cantarolava uma música em sua cabeça e os dedos da mão indicavam que sabia tocar piano, pois se mexiam no ritmo silencioso que seu pensamento comandava. O carro parou, todos começaram a operação de sempre que envolve sair de um carro: voltar à realidade, olhar para a frente, se ajeitar, descruzar as pernas, tirar o cinto, fechar os vidros, destravar o pino, abrir a porta. Feito isso, colocou o pé esquerdo no chão, depois o direito e espreguiçou-se. Sentiu um repuxado gostoso da lombar se esticando. Fazia sol, mas nem reparou se estava muito quente. Bocejou e se dirigiu ao porta malas para recolher as sacolas de supermercado que todos os quatro ajudavam a carregar para a casa. Esta era uma casa diferente onde a entrada se dava pelo segundo andar. O térreo, por assim dizer, compreendia a parte divertida da casa: piscina, churrasqueira, uma super ducha, o canil dos 3 cachorros, jardim… Portanto, era necessário subir uma escada para abrir a porta que dava entrada para a casa: sala, cozinha, escada, um quarto, um banheiro, um lavabo outra sala com mesa de sinuca e bar. No terceiro andar havia mais dois dormitórios com um banheiro compartilhado. A tal porta de entrada foi aberta e, ao entrar, esbarrou nas sacolas de compras e no ombro de uma das três pessoas do carro. Pediu desculpas e deu um passo para trás. Não tinha ideia do demônio que encontraria… A segunda pessoa fechou a cara, jogou as sacolas no chão e a primeira escutou nitidamente o quebrar da garrafa de azeite. Que erro cometeu ao tentar certificar-se que era mesmo o azeite, pois ao olhar para baixo e ver o líquido espesso escorrer pelo chão, sentiu um ardor do susto que o tapa na lateral da face deu. A reação foi ficar sem reação. Parou, olhou e, sem saber por quantos segundos, tentou encaixar a realidade ao cenário absurdo que acabara de viver. Com cara de espanto, perguntou alguma coisa estúpida que claramente demonstrava sua incredulidade do momento. A resposta endemoniada foi rápida: outro forte tapa. O estalado da vez foi na cabeça. Aí foi de lascar. O tapa tirou a primeira pessoa do transe e a fez reagir na mesma moeda: sem pestanejar, deferiu um tapa cortante que traçou seu caminho do olho direito até a ponta do nariz da segunda pessoa. Demônio sorriu e veio com seu golpe baixo. A primeira, ainda sem acreditar em nada (sim, a cabeça ainda tentava fazer sentido de tudo aquilo no meio da adrenalina), sentiu um ardor queimar seu braço e teve sua segunda visão do horror: a cabeça da segunda estava grudada em seu antebraço o mordendo tão fortemente que uma gota saia pela lateral. Agora a cabeça da primeira parou e só o instinto agiu. Catou o demônio fantasiado de segunda pessoa pelo cabelo, virou sua cabeça e cravou as unhas na garganta. Quando sentiu a unha penetrar a pele, arranhou com força até a clavícula. O ardor deve ter sido tanto que a segunda pessoa soltou tanto o braço quanto um grito. Se afastaram. Bufavam. Se encaravam. Seguravam suas feridas com as próprias mãos. Após o berro, logo apareceram as duas outras pessoas do carro. Atônitas, se entreolharam sem absolutamente nada entender. Viam raiva, escutavam as batidas dos corações pulsantes das duas primeiras pessoas, sentiram o cheiro de sangue. Se assustaram. Mas como qualquer duas pessoas com pulso firme fazem, as duas decidiram resolver o assunto dentro da casa. Com uma singela e firme troca de olhares e, ao que tudo indica, certa transmissão de pensamento, as duas de punho selaram o acordo: sentaram as duas primeiras uma de frente para a outra e exigiram que se desculpassem de tamanha idiotice. Quando não tiveram sua ordem obedecida, embebedaram álcool em chumaços de algodão e limparam as feridas abertas. A pessoa da garganta soltou um berro abafado. A que teve o braço mordido se segurou. A da garganta cometeu o erro de deixar uma lágrima escorrer. Foi aí que o demônio mudou de lugar e ocupou o corpo da primeira pessoa que abriu um largo sorriso e disse “bem feito”. Foi a passagem mais rápida que o demônio fizera no corpo de alguém, pois foi expulso no ato pelo tom gélido da mãe da primeira pessoa. Esta exigiu agora o bendito pedido de desculpas e, com o ardor do álcool no braço e o medo da mãe, a primeira pessoa de apenas 7 anos resmungou que a outra havia começado. A segunda pessoa, apenas 1 ano mais velha que a primeira, grunhiu um pedido de desculpas também ao comando da sua mãe que segurava os 5 traços de corte na garganta com um tanto de algodão ardido. Demorou o tempo recorde de 3 dias para voltarem a se falar e brincar juntas. Demorou só mais um dia para exibirem as marcas entre os colegas e fazerem competição secreta de quem ganhava mais olhares surpresos ao atestarem os estragos feitos. E só mais um dia para acharem graça daquilo tudo.