(in)conformada

Houve muito café, bolachas, chás, vodkas e simples desculpas de pedidos de açúcar para tornar-me a melhor amiga de minha vizinha recém chegada ao prédio onde escolhi morar há tanto tempo. Sou estrangeira erradicada em seu país, de forma que unimos nossos momentos sós através das mais variadas conversas de nossas vidas. Já a escutei pacientemente falar sobre seu marido, relatar sobre os filhos, chorar pelo abandono da profissão em prol da família e até rir da vida que levou. Da vida que a acabou levando.

Hoje era minha vez e, após servir-me de mais uma taça de chá de maçã, comecei minha narrativa com um suspiro, apoiando meu queixo na mão direita para suportar o peso do relato, fitando a mesa com olhar que denunciava o tempo para o qual eu retrocederia. O havia conhecido muito, muito tempo atrás e até hoje lembrar de certas experiências compartilhadas, vividas e sentidas ao seu lado me trazem um sorriso no rosto e um aperto amargado na garganta. Muitas vezes invento qualquer coisa para quem me vê sorrindo assim, pois a maioria não entende. E nem os culpo. Poucos tiveram a oportunidade de ter o que tivemos. Era algo nosso. Mesmo que às vezes eu pense que o que tivemos tenha sido algo somente meu, sorrio de novo para mim mesma, sacudo a cabeça em negativa e me digo para deixar de ser boba. Confesso que também repito este mesmo movimento quando quero afastar as lembranças. De que adianta lembrar de detalhes vividos já há tanto tempo? Os deixo numa nuvem ali num canto e penso em outra coisa, em algo mais “real” do meu hoje. Claro que, por terem sido há milhares de minutos e horas, centenas de dias e muitos meses e anos atrás, às vezes me pergunto se o acontecido foi mesmo como penso ou se como gostaria que tivesse sido. Também gostaria muito de saber se uma lembrança minha de específico momento teve o mesmo impacto nele que para mim. E vice-versa: o que foi significante para ele que eu talvez não me lembre bem ou pior… nem me lembre de nada por não ter percebido o que se passava ali dentro dele.

Éramos jovens, complexos, lindos, cheios de defeitos, sorrisos, curiosos, cheios de vida e por vida. E, por “vida”, faço questão de enfatizar e englobar tudo que esta palavra contém: energia, vontades, medos, inseguranças (tolas, tão tolas…), olhares sinceros, erros, acertos, competições, provocações, dúvidas de tantas certezas, certezas de tantas dúvidas, emoções, emoções e emoções.

Como mencionei há pouco, esta é a minha versão da nossa história e, porque não, estória também. Meu conto pode ser por vezes muito romantizado e, por outras, muito duro, mas será bem real ao que senti e sinto ainda. Quando for somente imaginativo e desejoso, confessarei. Admito que estes serão poucos, pois sou durona e medrosa. Sempre fui. Um misto muito complexo de personalidade para explicar aqui, mas citá-lo é vital para uma melhor empatia para comigo e minha tardia confissão.

Minha impressão ao tê-lo conhecido era de ter encontrado um jardim. Havia ali tanta terra fértil para plantar, cultivar e colher deliciosos frutos e flores das mais variadas. Um jardim raro. Jardim que, naturalmente, exigiria muito cuidado e muita paciência para ver florir. O estranho é que já havia certa quantidade de plantações ali e para alguns ele mostrava as mais belas de modo bem exibicionista. Todos se encantavam. Já no outro lado, parecia haver sempre uma forte chuva ou um sol árduo demais em cima impossibilitando a mudança e o crescimento das plantas. Era algo mais fechado. E para entrar ali pagava-se caro. Era praticamente uma volta de montanha-russa. Uma vez que se entra e se senta, não se sai mais. O passeio te domina num tanto que, como no brinquedo rápido e furioso, a adrenalina te cega e não se sabe muito como agir. Era preciso esperar pelo fim da volta.

Eu sempre soube que ficaria pouco tempo ali. Não seria para sempre dele. Chegaria o dia que ele viria para o beijo e eu viraria o rosto. A saudade que sentiria no futuro já me acompanhava naquele momento, mas não havia outra forma. A minha semente foi plantada, tenho absoluta certeza disso, mas talvez eu tenha escolhido parte do terreno onde não se batia muita luz ou, possivelmente, luz demais. Posso ter eu mesma queimado minha plantinha no jardim. De qualquer forma, me plantei lá. Jamais saberei se ele me regou ou tirou do sol excessivo sem me avisar. Somos cuidados e mantidos em certos momentos por quem nem pensamos.

O curioso foi perceber, com o passar do tempo, sua ambiguidade interna. Parecia um jardim a céu aberto, onde ora chovia e ora fazia um lindo dia. Ele optava por sair em seu próprio jardim, seu vasto jardim, como se fosse um convidado e que, em algum momento (breve ou não) tivesse que retornar para seja lá de onde tinha vindo. E era assim com todos. Todos vinham a convite e com tempo marcado. Eu consegui vê-lo brincar, pular, se machucar, rolar e rir comigo muitas vezes, mas se entregar em seu próprio espaço ficou desconhecido para mim. Tenho minhas teorias, mas nenhuma certeza. Por vezes acho que nem ele próprio saberia explicar. E isso nem vem mais ao caso, mas sim, queria poder olhar mais uma vez em seus olhos e sair da dúvida e entrar na paz que só a certeza te dá. Já não posso mais fazer isso, pois ele faleceu antes de eu criar coragem suficiente para sequer convidá-lo para qualquer bate-papo casual, quem dirá para assumir pra ele a minha curiosa necessidade e, para mim mesma, assumir também o medo de, talvez, escutar o indesejado. Inseguranças tolas, tão tolas… Tomei conhecimento de sua morte poucos dias atrás e minha fortaleza interna desabou em pranto, alternando soluços, lágrimas e suspiros, na frente da vizinha que me passava lenços de papel de uma caixinha que parecia ser infinita.

Optei por permanecer na ilusória certeza de que sim, sim, teríamos sido muito felizes juntos num possível futuro. Carregarei comigo o peso da decisão para sempre. Também carregarei a leveza e a beleza de poder sorrir a cada dia por algo que vivi num passado certeiro que ninguém tirará de mim.

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