Hoje

Era sua primeira tarde na capital argentina, em sua primeira visita a qualquer país fora o seu de nascença. Estava emocionadíssima e um pouco mais eufórica do que as pessoas normais e, ouso até dizer felizes, que andam por aí pelas ruas. O sorriso travado no rosto sugeria muito mais um rosto de uma drogada acordada há dias do que de uma serelepe turista em busca do desconhecido. Eram quase três horas da tarde e ainda não havia almoçado. Talvez fosse por conta do fuso horário, talvez fosse pela agitação interna, mas o estômago era o órgão mais calmo de todo o seu ser. A garganta clamava por uma cerveja e a língua, por um docinho. Mistura errada para a suposta hora do almoço, mas foi exatamente por se lembrar disso que resolveu se entregar à esta orgia bucal. Sentou-se numa mesinha para duas pessoas num bar, boteco, “queria-ser-chamado-de-restaurante”, espelunquinha local e esticou os pés à sua frente na cadeira da sua visível não companhia. Só de estar ali, naquele momento, olhando para um completo cenário de coisas e pessoas novas, o valor da passagem já tinha compensado. Aquele céu azul oposto ao seu costumeiro cinza a relembrou do dia anterior que agora parecia tão distante. Engraçado como avião tem este poder de nos transportar para outro “tudo” em questões de horas. Ele te leva para outra vida, abre espaços para dúvidas, certezas, páginas em branco ou páginas escritas no mesmo espaço de tempo que gastamos dormindo por dia. De acordo com seu desejo mais íntimo e mais forte que o da cerveja, o ontem dela era, por favor, para ficar mesmo para sempre dentro de um ontem. Saiu de seu país por sentir-se totalmente diferente de todos e completamente indiferente a todos eles. Não era nem questão de desajuste. Era o vazio que não havia palavras e a plenitude da certeza que não se descrevia. Enfim, ela estava no hoje e não no ontem. Ela estava no hoje, no amanhã e no ano que vem, mas nunca mais no ontem. Estava sentada no seu cóccix na beirada da cadeira, com as mãos enfiadas dentro dos bolsos do jeans surrado e lindo, ainda com os pés na cadeira feita para os pés dela. Veio a garçonete e a cumprimentou com uma frase rápida que foi inteiramente incompreendida pela turista de hoje, um sorriso também rápido e um olhar que denunciava sua rápida vontade de tirar o pedido e voltar, de forma rápida, para os outros clientes. Sem mexer qualquer outra parte do seu corpo, exceto o globo ocular para cima e para baixo, estudou a garçonete por uns segundos e falou “beer”. Sem sorrir e sem pressa. Permaneceu assim não por ser antipática ou tímida, mas simplesmente por não falar uma palavra do idioma de hoje. A garçonete fez uma pergunta à qual ela, ainda de forma estática, respondeu “beer”. E aí sorriu para tentar fazer a garçonete sair dali. Funcionou. Em poucos minutos, a moça trouxe uma garrafinha de rótulo azul que parecia bem gelada e a colocou à frente da turista. Sem se mexer, estudou lentamente a garrafinha. Era sua primeira cerveja importada tomada no local de origem (então não era mais importada?) e isso exigia um momento de comemoração interna, de júbilo e apreciação. Seus olhos se mexiam de forma calma, profunda e lembravam um filme rodado em câmera lenta. O hoje dela era assim: lento, frugal, quase não real. Não se moveu da péssima postura para a coluna que remetia um total descaso com o mundo externo. Somente a mão esquerda lentamente se desfez do bolso que cismava em segurá-la e acariciou a garrafinha com o indicador. Sentiu a temperatura, as gotas suando do lado de fora, o rótulo meio rasgadinho no canto inferior direito e fez a letra “Q” em cima da letra “Q” do rótulo. Em seu idioma original, “sorte” começava com a letra “q”. Girou a base da garrafinha e desenhou o “S” da mesma forma. Sorriu, pois “sorriso” em seu idioma de origem também começava com “s”. Resolveu experimentar sua sorridente sorte líquida que a brindava ali sozinha em sua frente. Deu o primeiro gole comprido que desceu feliz pela garganta e abraçou sua língua. Deu um estalinho com a boca em sinal de aprovação e devolveu sua garrafinha-talismã à mesa. O próximo gole foi tão degustado quanto o primeiro. O segundo gole da primeira cerveja importada de hoje. Sorriu.

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