Meu melhor amigo virou meu namorado. Meu marido virou meu amante. Assim se desenrolou um encadeamento de relações, sentimentos, pulsações, medos e confusões na minha vida por exatos 247 dias.
Consigo me lembrar do que se passou há outros exatos 219 dias. Acordei, me enrolei levemente no meu marido buscando conforto entre o acordar e o despertar. Nossa rotina matinal era nossa marca, preenchida por carinhos ou charmosas preguicinhas, algo presente em nossas vidas desde o primeiro dia em que dormimos juntos. Não tínhamos sequer cogitado a possibilidade de mudar isso – e nem queríamos. Enfim, acordei e despertei junto àquele que me acompanhava há 12 anos, todos os dias. Era um sábado previamente reservado para um perfeito laissez-faire. Sem compromissos devidamente não agendados, tomamos café com calma no aconchegante jardim que nos transportava para fora da metrópole na qual morávamos.
Eu estava entrando para pegar mais café quente pra ele e um croissant para mim, quando escutei um “vrum-vrum” soando de dentro da minha bolsa. Com o croissant numa mão, procurei o celular com a outra. Abocanhando o delicioso pãozinho, sugeri um “oi, querido!”, sorrindo. Limpei a boca com as costas da mão, engoli o restante e perguntei como meu escolhido e merecido melhor e grande amigo estava. Nossa amizade era, para alguns, algo incompreensível, pois não fazia sentido tanto amor, tanta dedicação, cumplicidade, lealdade e profundo conhecimento mútuo terem permitido que não nos pertencêssemos como casal. Quando tais questionamentos surgiam, nossas respostas vinham em formas de sorrisos, abraços, fingimentos de uma escondida paixão e até invenções de grandes estórias que já tínhamos vivido. Era sempre uma diversão fazer esses teatros com o Clyde. Sim, como de fácil dedução, eu era a Bonnie. Até apelidos tínhamos.
“Oi, querido”, disse eu, entre um sorriso e uma limpada de boca. Escutei um suspiro preso antes do tão costumeiro “tudo bem?”. Ergui uma sobrancelha e grudei o celular ao ouvido. Ficamos em silêncio, pois mesmo sem saber qual era a notícia, eu já sabia que não era boa. Ele anunciou seu tempo de vida como se estivesse me pedindo um pedaço do croissant mordido. “Tenho, no máximo, mais um ano para viver.” Sentei-me na ponta da cadeira que me ajudou por já estar para fora da mesa. A mão que segurava o celular me irritou por tanto tremer e eu achar que aquilo atrapalharia a audição. Troquei, então, de mão deixando o pão ser imediatamente lambido pela Jackie O., nossa cadela.
– Câncer?
– Sim. Cérebro e onde mais quiser.
– Não quero.
– Nem eu.
– Puta que o pariu, Clyde.
– É.
(silêncio)
– Bonnie, não te liguei para lamúrias. A verdade é que sei disso há uma semana e há exatos 6 dias e 11 horas que venho tomando coragem para te ligar.
– Porra, Clyde, uma semana com um diagnóstico puto deste e só me liga hoje? E ainda não quer lamúria? Tá bom, depois não reclama quando eu não chorar no seu velório e nem vem puxar meu pé.
Minha saída de sempre em momentos de dor ou tensão era soltar umas cretinices dessas. Ele, muito gentilmente ou simplesmente acostumado comigo, soltou uma leve e gostosa gargalhada do outro lado. Dessas típicas de quem está de bem com a vida, não morrendo.
– Tá bom, não vou reclamar. Mas o lance do pé, você já sabe… Mas, me escuta, o que queria conversar com você é outra coisa. Está sozinha?
– Não. Bom, estou sozinha aqui na sala, mas o A. está em casa.
– Hum, melhor. Assim falo rápido porque ainda me falta o colhão. Estou morrendo e ainda tenho essa porra de trava. Olha, quero te pedir o maior favor de todos.
– Claro, qualquer um! Estou aqui pra você.
– Calma, me escuta antes…
– Hum…
– Quero que você seja minha namorada até eu morrer.
O celular caiu em cima da mesa. O peguei rapidamente ainda a tempo de escutar um chamado “Bô? Tá aí?”. Claro que estava ali, porra. Quem estava morrendo era ele, eu estava ali, viva, escutando e tentando assimilar se aquilo se tratava de um desatino ou de… ah, sei lá mais o que poderia ser.
– Hã? – foi tudo que consegui emitir de som, já que o cérebro não conseguiu nada melhor que isso.
(suspiro dele)
(pausa minha)
– Eu sei, é muito a ser pedido, mas… porra, que merda… Morrer sozinho é foda.
(suspiro meu)
– Ah, foda-se! Estou morrendo mesmo, então vou falar logo! Neguei até o fim, mas já que agora o fim chegou, só me resta te contar o que você já deve saber. Sempre fui apaixonado por você.
(suspiros nossos)
– Mas…?
– Sério, sem perguntas. Não tenho um manual e nem tempo para explicações. Quero ir dessa pra próxima com sentimentos que me façam crer que a vida valeu mesmo a pena. Mais que isso! Quero saber que essa merda dessa doença possa ter vindo para trazer algo de bom também.
– Merda, que grande merda… e… sinto muito. Muito.
(chorei)
– Me dê este presente. Ele tem prazo de validade.
Não sabia o que me esvaziava mais. Se a dor por saber que meu tão amado Clyde partiria em breve e para sempre, ou de imaginá-lo convivendo comigo ao seu lado todos esses anos sem nada me contar.
Suspirei algumas vezes e o escutava respirar do lado de lá, certamente sentado com a perna direita apoiada no encosto da poltrona ao lado do sofá. Ele adorava se sentar assim. Devia estar jogado no sofá com aquele jeito despretensioso, mas conscientemente charmoso. Só de imaginar a cena, meus olhos cheios de lágrimas entraram em contradição com minha boca que sorria. Apertei os dedos e soquei a mesa num acesso de qualquer coisa. Um mundo de imagens se projetou à minha frente e eu parecia assistir a um vídeo em HD da minha vida. Tantos eram os detalhes que as emoções bloquearam qualquer senso de tempo, fala, audição e análise. Só me restou a visão interna, pois o vídeo projetado estava sendo sentido através dos meus olhos fechados. Me vi de branco sorrindo para A. com toda a alegria que havia no meu coração no dia do nosso casamento. Vi o brilho dos olhos do A. ao segurar meu rosto e dizer “sim”, escutei as palmas e os “uh huuu” dos amigos quando demos o primeiro beijo como oficialmente marido e mulher. Vi também, ainda no casamento, o sorriso de canto e um aceno com a cabeça vindo do Clyde, como se me confirmasse e aprovasse aquele momento. Quase podia escutar a voz calma dele dizendo “isso, menina, fez a coisa certa”. Mais aplausos ecoavam na minha cabeça. Flashes da festa, da comemoração, dos brindes, das fotos, da dançaria e depois da entrega completa quando sozinhos no quarto, vivendo a máxima “enfim, sós”. Estes sentimentos todos borbulhavam em alta potência dentro de mim. Como poderia alguém passar uma vida sem sentir ¼ de tudo que eu havia sentido em curtas 14 horas de duração? Estranho, injusto, inaceitável? Era simplesmente assim e teria que ser aceito? Ou havia algo que pudesse ser feito para mudar isso?
Segundos, minutos ou até mesmo inteiras 24 horas poderiam ter se passado ali naquela ligação inesperada, delirante e sem nenhum preparo para ser recebida. Fui trazida de volta da hipnose pelo próprio Clyde: ele ouviu meus pensamentos e tentou me acalmar com quase inaudíveis “shhh… shhh”. Ele conseguia sempre me acalmar, era impressionante o dom. Dei uma cafungada, sacudi lentamente a cabeça ainda em total resistência àquele momento, mas por ele, engoli o soluço e soltei a palavra que nem eu acreditei escutar. “OK”.
Assim se desenrolou um encadeamento de relações, sentimentos, pulsações, medos e confusões na minha vida por exatos 247 dias. Transformamos o processo de morte em logística. Olhamos para a madre das trevas com brilhos de adolescentes. Sorrimos. A desafiamos. Choramos. Nos resignamos. Transamos. Nos apaixonamos. Até brigamos e discutimos a relação. Meu melhor amigo virou meu namorado. Depois que ele se foi, deixando atestada sempre a sua felicidade, sobrou metade desta felicidade para mim. A outra, chora até hoje no ombro do meu marido de quem voltei a ser mulher.
Quem faz aniversário é você e quem ganha o presente somos nós, seus fiéis seguidores… Gostei da sua volta em grande estilo, adorei o texto!!!! Parei tudo que estava fazendo aqui para ler. Vou ter que ler de novo depois com mais calma. Parabéns!!!!!!
Ju,
Que texto dramático e sensível – belo!!!
ADOREI!!
Aliás, adoro seus textos. Eu parei de fazer o que estava fazendo para continuar a viagem na sua história….
Você um talento para com as palavras …
Beijo e até o próximo texto.
Luciana