Tenho 57 anos. Tinha escrito antes que “sou uma senhora de 57 anos”, mas resolvi apagar porque este termo nunca combinou nem com a minha avó. Nunca usamos essa palavra em casa e me sinto tão estranha como se descrevesse dinheiro em tostão. 57. Não considero muitos anos, mas considero muitos mais que menos. Sempre me disseram não aparentar a idade que tenho, mas a gente nunca acredita cem por cento nas pessoas, né. Em vez disso, a gente sorri e agradece. E segue a vida, aparentado mais ou menos. Escolhendo acreditar mais ou menos. Acrescento que minha cultura de poucos toques ou afagos contribui para minha falta de crença. Somos pouco próximos, nos abraçamos tão pouco que um apertar de mão já é considerado quase erótico. Sim, sou também exagerada e sarcástica, mas não menos verdadeira. Deve ser por toda a escassez de toques e carinhos que exagerei nas cores do meu armário. Sempre colorida, talvez para trazer um pouco mais de calor ao todo-dia da vida. Isso me faz lembrar que sempre me comentaram, a vida toda, que meu estilo muito único e interessante contribui para essa aparência supostamente mais jovem (ou menos velha). Taí outro termo que a gente nunca sabe se leva pro positivo ou para a total desgraça: “interessante”. Ai, como essas coisas no meio do caminho me deslocam: ou arrebenta logo num elogio desconcertante ou desconcerta numa frase que nos arrebenta, mas, por favor, o meio do caminho, não. Enfim, o fato é que hoje, num pleno sábado de temperatura amena com céu azul e uma brisa pré-invernal, resolvi tomar café da manhã fora. Levantei com preguiça e demorei para me decidir se devia ou não sair. Fiquei um tempo lendo na cama e bebendo água. Abri as janelas, deixei o ar fresco entrar, como também o cheiro ao qual até hoje não me acostumei, o da leve maresia que teima em chegar até aqui. Meu lar, doce lar, foi escolhido a dedo num morrinho consideravelmente alto onde achei que o olor do mar se dissiparia por entre todos os outros lares antes do meu. Me enganei. Tudo bem, se todos os meus enganos tivessem o peso deste, aí com certeza eu aparentaria menos anos de que mais. Quando cheguei na página 133, senti meu estômago queixar-se da leitura e negociamos que o capítulo seria terminado antes de eu sair. Leitura boa, interessante. Fechei o livro, esfreguei levemente o nariz com as pontas dos dedos para alongar a pele que segurava o peso dos óculos. De banho tomado e vestida de maneira interessante, saí para meu petit déjuner. Essa é minha refeição favorita do dia, sempre foi, há pelo menos 53 anos – quando me lembro de ter dito isso para minha mãe. Poderia tomar café da manhã de manhã e de noite, todos os dias, há 53 anos. Entrei num local já conhecido e sorri para as duas atendentes que me olharam ao escutar o sininho da porta quando a abri. Mentalmente, pedi licença às cadeiras que estavam no meu caminho para chegar à última mesa do local. Protegida por paredes nas suas costas e lateral, esquerda, ali me sentei, com a mirada em direção ao sininho da porta. Quando vieram retirar meu pedido, dispensei o menu e pedi o meu costumeiro desejo, solicitando minuciosamente as alterações que eu gostaria. Ela sorriu, se virou, ajeitou o cabelo e eu olhei pro meu celular. Em busca de inspiração de quadros para a casa, o Pinterest me mostrou uma foto de um corte de cabelo que me deslocou: senti algo muito além de interessante. Procurei meus óculos dentro da bolsa com a mão direita, sem tirar os olhos da pequena tela. O retirei da caixinha do mesmo jeito: sem olhar para ele,o encaixei no rosto para ver melhor os detalhes. O estômago, conhecendo meu jeito um tanto intempestivo, protestou suas necessidades novamente. Queria garantir que eu não saísse dali sem antes comer, pelo menos, metade do croissant. Procurei por outros similares e, nessa infindável brincadeira de buscar imagens, de repente me deparei com a conta (que não recordo ter pedido). Paguei e andei 3 blocos adiante, virei à direita e depois à esquerda e cheguei no salão de cabelereiro. Nunca tinha ido lá. Ao contrário do local do café, aquele salão continha um ar platônico para mim. Era chic, atrevido, quase mal-educado. Me atraía sem o menor esforço. Abri a porta com uma mão, com a outra arrumei o cachecol laranja-vida. Sorri e perguntei à recepcionista que parecia ter sido moldada junto com aquele balcão, se havia alguém disponível para um corte. Este corte aqui, mostrei a telinha ainda aberta no Pinterest. Com quem? Tanto faz. Não conheço ninguém. Que seja aquele que mais souber copiar essa foto. Ela sorriu e me indicou onde esperar. Com paredes divididas entre tijolos rústicos e outras cobertas com fotos P&B de bandas e músicos ingleses, sentei-me nas poltronas individuais que se assemelham a de reis e rainhas. Uma camurça preta me envolveu e reclinei a cabeça, cruzando a perna esquerda por cima da direita. Estava cantarolando a canção antiga do David Bowie que tocava quando um rapazinho se materializou do nada e me chamou para lavar o cabelo. Fazia muito tempo que eu não lavava o cabelo de maneira tão detalhada e profunda. Cada curvinha da cabeça foi tocada, massageada, lavada, molhada. Seus dedos escorriam pelo meu couro cabeludo como dançarinos num rinque de patinação. Era isso eu pensava e sentia. Parecia até estar em sincronia com as batidas das músicas inglesas, alternando ritmos entre Depeche Mode, Strokes, New Order e aquela jovem de boca bem grande e cabelo preto que morreu por drogas (não me lembro o nome dela agora, mas a forte voz é inconfundível. Única também). De olhos fechados, sentia cada movimento dos dedos, a temperatura da água que se alternava a cada vez que ele abria e fechava a torneirinha, o som do “chac-chac” dos dedos ao lado das orelhas. Um devaneio. Eu falei que aquele salão parecia quase uma falta de educação. E eu estava certa. Aquilo não se pode fazer sem antes avisar. Tem que ter plaquinha, que nem em parque de diversão, avisando das altas emoções e até um limite de idade por gerar possíveis problemas no coração. Na minha época, salão era quase um afazer e pronto. Sem glamour, sem massagens, sem nada. Era entrar, cortar e rezar para sair de lá com uma aparência melhor do que de quando entrou. Senti seu leve tapinha no ombro quando estava pronto para cortar o cabelo. A caminho da poltroninha da mudança, diminuí o passo. Ele percebeu e me olhou. Eu olhava pro chão. Tirei a toalha encharcada da cabeça, ele a recolheu. Perguntou se estava tudo bem. Eu lhe respondi com um meio sorriso e afirmei que sim. Com vergonha, mas também com um ímpeto honesto de coragem, o abracei como se abraçasse em ente querido. Agradeci genuinamente pela excelente lavagem e avisei que tinha desistido do corte. Já não era mais importante. Nem interessante. Acho que ele me perguntou se eu queria secar o cabelo, mas eu já me dirigia ao caixa para pagar.
Você não faz ideia do quanto eu esperava novamente ler suas palavras. Elas cumprem o papel de nos dar carona na sua imaginação, vivendo os momentos descritos tão habilmente, com tanta fluidez e leveza. Continue escrevendo. Tenho certeza que faz muito bem para você, mas também faz um bem enorme para nós!! 🙂
🙂